Tony Judt: “Grande ciclo ideológico” da economia ortodoxa está chegando ao fim

RAFAEL CARIELLO
DA FOLHA DE SÃO PAULO

Para o historiador britânico Tony Judt, o mundo assiste aos últimos momentos da hegemonia dos economistas ortodoxos no debate de políticas públicas.

O autor de “Pós-Guerra – Uma História da Europa desde 1945” (ed. Objetiva) e professor da Universidade de Nova York chama a atenção para os “grandes e longos ciclos de linguagem política hegemônica na história”, dos quais, segundo ele, ninguém escapa.

O mais recente deles, iniciado nos anos 70, privilegia argumentos estritamente financeiros, medidas de eficiência e contribuições para o crescimento do PIB como critérios de avaliação de decisões coletivas das sociedades.

Tal ideologia tem raízes na cultura e na sociedade americanas, por um lado, onde prevalece a desconfiança de que perdas individuais (em pagamentos de impostos, por exemplo) possam levar a ganhos públicos e coletivos, e, por outro, nas origens de um novo pensamento liberal reativo às grandes intervenções estatais do fascismo e do nazismo.
Há sinais, ele diz, de que tais parâmetros de debate estejam se esgotando, mas tal “ciclo” não chegará ao fim, defende Judt, sem fazer uma última grande vítima: a reforma do sistema de saúde nos Estados Unidos, proposta pelo presidente Barack Obama.

FOLHA – A que o sr. atribui as fortes resistências que Obama tem enfrentado para levar adiante seu plano de reforma na saúde nos EUA?
TONY JUDT
– Se você fizer uma pesquisa com os eleitores americanos, e questioná-los se querem uma cobertura médica mais abrangente, eles dirão que sim. Se perguntar se apoiam medidas que aumentem a expectativa de vida da população, dirão que sim. Se perguntar se apoiam atendimento médico para todos, mesmo para os que tenham problemas financeiros, dirão que sim.

O problema então é a disputa retórica que cerca essa discussão. Os eleitores americanos querem tudo o que o eleitorado austríaco ou sueco quer em termos de saúde ou educação, mas, se você perguntar a eles se querem a social-democracia, se querem a medicina estatal que garante esses direitos e esses sistemas, eles dirão que não.
Há duas razões para isso, uma mais antiga, outra mais recente. A razão antiga tem a ver com a resistência ideológica, retórica à ideia de governo centralizado, em particular um governo centralizado tomando dinheiro das pessoas para usá-lo nesses programas. Isso sempre foi combatido nos EUA.

Mas a razão mais nova é que o centro de gravidade dos debates sobre políticas públicas migrou para longe das preocupações sociais e se aproximou do discurso econômico, em que as políticas são avaliadas por um critério de ganho para o crescimento econômico ou por um critério estrito de eficiência.

Estamos lidando com um tipo de padrão retórico que tem grande dificuldade de discutir os efeitos sociais de um programa sem antes perguntar pelos critérios de eficiência desses gastos, que obviamente não são o melhor critério de avaliação.

FOLHA – Por que o sr. crê que a disciplina econômica ganhou essa predominância no debate político e intelectual nos EUA?
JUDT
– Em parte porque as condições que alimentavam o debate entre os anos 20 e os anos 60, de medo de revolta social, de medo em relação às possíveis consequências políticas de injustiças sociais ou desigualdades econômicas, foram em parte superadas.
Devemos lembrar do choque que foram a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial nas gerações que as experimentaram, e o impacto que tiveram nas políticas públicas.

Creio que uma das razões por que esse modo de ver a ação estatal foi abandonado nos EUA tem a ver com o fato de que políticas públicas que se baseiam em impostos e em um governo central que redistribua em serviços o dinheiro recebido dependem de um alto grau de confiança entre as pessoas -e nos governos-, algo que funciona melhor em sociedades menores e mais homogêneas, como a Suécia ou a Holanda.

Esse modelo não funciona tão bem em sociedades grandes, heterogêneas e desiguais, como os EUA, em que as pessoas lidam com outras em que não necessariamente confiam. Os EUA sempre foram marcados pela “política da suspeição”, em que se diz que o mercado funciona melhor porque maximiza os interesses individuais em benefícios públicos.

FOLHA – Então conta o fato de os EUA serem uma sociedade multiétnica e desigual?
JUDT
– Esse é um fator bastante importante. Também há uma tendência cultural, que provavelmente está diminuindo, de crença na melhora pessoal, no avanço econômico individual.
Na Europa, a grande maioria das pessoas não espera que seus filhos pertençam aos 5% mais ricos. Quando questionados se gostariam de pagar impostos e ter garantias de que o Estado protegerá a maioria dos indivíduos de incertezas, os europeus dizem que sim. Porque veem a si mesmos como os beneficiários dessas políticas.
Quanto aos americanos, eles tendem a crer que, se pagarem muitos impostos, outros serão os beneficiários.

FOLHA – Do que o sr. diz, é possível afirmar que a ideia de “homem econômico”, que raciocina em termos de ganhos pessoais, e a ideia de livre iniciativa sem intervenção estatal, que são pilares da economia ortodoxa hegemônica nas últimas décadas, têm raízes culturais nos EUA. Há uma relação entre o sucesso dessas ideias e o tipo de sociedade?
JUDT
– Totalmente. Mas é preciso relacionar a força que essas ideias tiveram a partir do grande economista austríaco [Friedrich von] Hayek, que inspirou boa parte das teorias econômicas nos EUA, e sua experiência política na Áustria do entreguerras.

Para ele, a intervenção estatal sempre leva à tirania política. Se você controla a economia, termina controlando a sociedade. Essas teorias econômicas ganharam força com Hayek, que atacava a social-democracia europeia, argumentando que suas políticas de intervenção e bem-estar social levariam ao fortalecimento do Estado, e isso poderia levar ao fascismo.

FOLHA – Assim como aconteceu na Alemanha nazista?
JUDT
– Esse era o seu modelo, claro, ou, melhor, seu antimodelo. Ele argumentava que a principal razão para apoiar uma economia de mercado desvinculada do Estado não era porque fosse o melhor modo de prover bens e serviços ou distribuir a riqueza, mas sim porque era o melhor modo de evitar repressão política.

O que aconteceu nos EUA é que uma geração de economistas, entre eles Milton Friedman [1912-2006, Prêmio Nobel em 1976], se apropriou das conclusões de Hayek sem prestar atenção a suas razões originais.

FOLHA – Mas, depois de Hayek e dos economistas americanos, esse tipo de pensamento e de discurso dominou qualquer debate no mundo a partir dos anos 80. Na América Latina, por exemplo, mas até mesmo na Europa continental. Por quê?
JUDT
– O antigo modelo, social-democrata, começou a parecer economicamente ineficiente.
Em segundo lugar, o modelo em que o Estado era dono dos meios de produção, no Terceiro Mundo, por exemplo, dava mostras de ser corrupto. O modelo americano era bastante sedutor, mas guardava um paradoxo. Era bem-sucedido justamente porque o dólar era a moeda padrão internacional, e os EUA podiam lidar com sua economia de um modo que nenhum outro país tinha condições de fazer.

Creio que existam grandes e longos ciclos de linguagem política hegemônica na história, dos quais ninguém consegue escapar. De meados do século 19 até os anos 20, o liberalismo clássico foi a linguagem das políticas nacionais e internacionais. Dos anos 30 aos 70, quase todos os países desenvolvidos -ou relativamente desenvolvidos- do mundo tiveram debates sobre políticas públicas formatados pela ideia de que o Estado é uma força necessária na economia e na sociedade.

Desde os anos 70, vivemos num mundo com uma linguagem política em que qualquer coisa que não possa ser descrita em termos econômicos não é considerada. Os EUA criaram um vocabulário que o resto do mundo adotou. Penso, no entanto, que estamos próximos do fim dessa “era econômica”.

FOLHA – Como assim o fim?
JUDT
– Creio que, nos próximos dez anos, veremos uma renovação das discussões de políticas públicas que aceitam descrever temas sociais e iniciativas de governo sob perspectivas mais amplas, mais éticas ou políticas, se quiser. O que acontece agora nos EUA, o debate sobre o sistema de saúde, talvez seja uma das últimas consequências da onda economicista.

FOLHA – É possível prever o que acontecerá nesse debate específico?
JUDT
– Creio que, por causa dos sérios erros de cálculo de Obama, o que teremos será uma concessão do governo a esse debate, que levará a alguma racionalização do sistema atual, mas sem mudança radical.

FOLHA – E qual foi o erro de cálculo?
JUDT
– Foram dois. O primeiro foi extrapolar a lógica do discurso de campanha, que pregava a superação das divisões partidárias e ideológicas nos EUA, para a estratégia de governo.
Obama foi eleito porque prometeu superar essas divisões, e acredito que tenha se levado a sério demais. Não é possível criar uma ponte que supere as radicais diferenças entre os que acreditam na moderna astronomia e os que acreditam que a Lua é feita de queijo. A proposta de reforma da saúde pintou um debate cosmológico como se fosse queijo.

O outro erro foi subestimar o poder dos preconceitos dos eleitores. Se ele tivesse dito diretamente para o público que o sistema de saúde europeu tem problemas, mas funciona, e que tudo o que os eleitores dizem querer na saúde só pode ser fornecido pelo Estado se tivermos um sistema de saúde forte, que custa dinheiro, mas que precisa ser feito para que os EUA sejam um país sério, tenho certeza de que teria tido muito mais sucesso.

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A entrevista do jornalista Rafael Cariello com o historiador britânico Tony Judt foi publicada no caderno Mais! da Folha de São Paulo do dia 13 de setembro de 2009.

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