A médica Maria Maeno, especializada em Saúde do Trabalho, alertou em dezembro, no Previdência, Mitos e Verdades: se a “reforma” da Previdênciadefendida pelo governo Temer for aprovada, a menor proteção e maior precarização das relações de trabalho levará as pessoas a “pensar várias vezes” antes de aceitar um afastamento, o que tende a aumentar a cronificação das doenças.
No texto abaixo, ela explica por que a Lei da Terceirização, sancionada por Temer no final de março, vai dificultar ainda mais o combate a doenças e acidentes do trabalho no Brasil: os dados necessários para entender o problema já são, hoje, pouco confiáveis. Com a nova norma, será ainda mais difícil estabelecer vínculos entre os males que atingem os trabalhadores e trabalhadoras e as empresas e setores onde efetivamente atuam.
Por Maria Maeno, médica e pesquisadora da Fundacentro
A permissão para a terceirização geral terá muitos impactos sobre os direitos dos trabalhadores, como já vem sendo discutido por diversos estudiosos do mundo do trabalho. No que se refere à informação sobre a saúde do trabalhador, se já temos discrepâncias em relação à real dimensão dos acidentes e doenças relacionados ao trabalho, essa discrepância tenderá a aumentar.
Há estudos como o do Dieese, em 2010, que estudou o setor elétrico com dados sobre acidentes do trabalho da Previdência Social e da Fundação Coge, que desde 2000, realiza a elaboração do relatório de estatísticas de acidentes no setor elétrico brasileiro, incluindo os terceirizados. Comparando os acidentes fatais registrados por essas duas fontes nos anos de 2006, 2007 e 2008, o Dieese constatou que há uma discrepância entre os números obtidos dessas fontes. Em 2006, a Fundação Coge registrou 3 vezes mais acidentes fatais do que a Previdência Social e nos anos seguintes, quase 3 vezes mais.
A tendência será de aumento da subnotificação, pois os acidentes ocorrerão com trabalhadores cujas empresas de vínculo poderão ter contratos com variados ramos econômicos. Se um acidente atingir um trabalhador terceirizado, caso tenha a Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) emitida, entrará na “cota” da terceirizada. Portanto, o Estado terá mais dificuldades de “rastrear” esse acidente, pois a empresa terceirizada pode ter contrato com uma empresa metalúrgica, química ou plástica. Na verdade, as empresas terceirizadas “alugam” a força de trabalho das pessoas.
Os dados da Previdência Social sofrem de problemas crônicos, entre eles, inconsistências e subnotificações. Por exemplo, no Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS), de 2014, 23.492 acidentes do trabalho tinham as atividades econômicas como ignoradas, o que equivalia a 3,3% do total dos acidentes. Após as correções que são feitas anualmente, o AEPS de 2015 nos mostra que na realidade foram 128.435 acidentes que não tiveram as atividades identificadas, isto é, 18% do total de acidentes.
Qual seria a explicação para tamanha diferença? As correções não deveriam ser para justamente diminuir o número de dados de baixa qualidade? Mesmo os números corrigidos de 2013 e 2014 apresentam discrepâncias que não conseguimos explicar. Por exemplo, em 2013 e 2014, de longe, as atividades econômicas ignoradas são as mais numerosas, se comparadas a aquelas nas quais mais acidentes foram registrados, mas qual seria a explicação para um salto de mais de 460% de 2013 para 2014 (de 27.792 para 128.435)?
Tampouco permitem aferir dados sobre acidentes do trabalho de empresas terceirizadas, justamente porque a classificação é feita pelos códigos dos ramos econômicos e dentro de certos ramos econômicos há vários outros de empresas terceirizadas, cujos trabalhadores acidentados têm os acidentes registrados nos códigos das empresas a que são vinculados. Com a terceirização, isso se ampliará.
Exemplo, se uma empresa tem o Código Nacional de Ramo Econômico (CNAE- classe) 1011, sabe-se que se trata de um frigorífico com abate de bovinos. As doenças mais frequentes entre os trabalhadores vinculados a esse CNAE-classe são consideradas ocupacionais, mesmo sem a emissão de CAT. No caso da terceirização, a empresa continua com o CNAE-classe 1011, mas os trabalhadores terceirizados podem ser vinculados a quaisquer outros CNAE, diferente do 1011. Isso quer dizer que as doenças adquiridas pelos contratados devido às condições de trabalho da empresa contratante não são reconhecidas como ocupacionais, se não têm CAT emitida. E essa emissão depende das inúmeras empresas terceirizadas que têm trabalhadores dentro da empresa. Isso já ocorre, mas se ampliará muito.
No caso de doenças ocupacionais altamente prevalentes, como as lesões por esforços repetitivos (LER) e transtornos psíquicos, em que boa parte é oriunda de um processo insidioso e muitas vezes lento de adoecimento, será mais difícil estabelecer em qual das empresas o trabalhador adquiriu a doença e portanto, o nexo causal será dificultado.
Esse cenário implica também possível diminuição da força dos sindicatos e uma maior dificuldade de organização dos trabalhadores.
Isso quer dizer que poderemos ter um aumento dos adoecimentos, pelas condições precárias e pela menor capacidade de enfrentamento das situações adversas, mas a origem ocupacional desses adoecimentos ficará camuflada pela maior dificuldade de estabelecimento de nexo causal.