Após dois dias de julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (29), por 7 votos a 2, pela improcedência da ação apresentada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que questiona a aplicação da Lei de Anistia sobre os agentes do Estado que praticaram torturas durante o regime militar (1964-1985).
Acompanharam o voto do ministro relator Eros Grau, pela manutenção da Lei de Anistia, os ministros Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Celso de Mello e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cezar Peluso. Já os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto entenderam que a ação da OAB era parcialmente procedente.
O relator da ação, o ministro Eros Grau, foi o único dos 11 membros do STF a ter sofrido tortura durante o regime militar. Ele foi preso e torturado nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, por advogar em defesa de opositores do regime.
O presidente Cezar Peluso iniciou seu voto dizendo que “é desnecessário dizer que nenhum ministro tem nenhuma dúvida da profunda aversão dos crimes praticados, não só pelo nosso regime de exceção, mas de todos os regimes de todos os lugares e de todos os tempos”.
Para finalizar, ele afirmou que, se é verdade que cada povo resolve seus problemas de acordo com a sua cultura, “o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia”. Ele disse ainda que “os monstros não perdoam. Só o homem perdoa, só uma sociedade superior é capaz de perdoar”.
Na ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental), a OAB pedia que o Supremo desse uma interpretação mais clara ao artigo 1º da lei, defendendo que a anistia não deveria alcançar os autores de crimes comuns praticados por agentes públicos acusados de homicídio, abuso de autoridade, lesões corporais, desaparecimento forçado, estupro e atentado violento ao pudor, contra opositores ao regime político da época.
A favor da revisão
O voto mais contundente foi do ministro Ayres Britto, que classificou os torturadores de “monstros” e “tarados”. “Perdão coletivo é falta de memória e de vergonha (…) O torturador é um monstro, um desnaturado, um tarado. Não se pode ter condescendência com um torturador”, disse.
Ele justificou seu voto dizendo que “exclui qualquer interpretação que signifique estender a anistia a qualquer tipo de crime hediondo, como a tortura, por exemplo”.
Para Ricardo Lewandowski, os agentes públicos que cometeram crimes comuns não estão anistiados automaticamente, mas seu voto abre a possibilidade para que eles sejam formalmente acusados e futuramente julgados por esses crimes. A decisão final caberia ao juiz, na análise caso a caso dos processos.
Ele disse ainda que os crimes cometidos com crueldade não podem ser considerados como políticos ou a ele relacionados. “Se assim fossem, teríamos casos de pedofilia, estupro e genocídio sendo classificados como meros crimes políticos”.
Contra a revisão
Ontem, durante a leitura de seu voto, de 76 páginas, o relator Eros Grau disse que, no Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não está autorizado a alterar e reescrever a Lei da Anistia. “Quem poderia revê-la seria exclusivamente o Poder Legislativo”, disse Eros Grau. O relator citou decreto do Chile que concedeu anistia naquele país e posterior pedido de alteração no Senado. “Como se vê, a revisão da Lei da Anistia será feita pelo Poder Legislativo.”
Eros Grau disse ainda que “a decisão pela improcedência da ação não exclui o repúdio a qualquer tipo de tortura. Há coisas que não podem ser esquecidas”, complementou.
Utilizando o mesmo argumento apresentado pela Advocacia-Geral da União (AGU) e pela Procuradoria Geral da República (PGR) durante a sessão de ontem, a ministra Cármen Lúcia disse que “não se pode negar que a anistia brasileira resultou de uma pressão social e foi objeto de debate de diversas personalidades e entidades, dentre estas, o próprio Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB”.
“Não vejo como reinterpretar uma lei, 31 anos depois”, disse a ministra.
O ex-presidente do Supremo, Gilmar Mendes, começou seu discurso dizendo que o voto de Grau foi “um voto memorável”. Ele também relembrou a posição do relator da ação afirmando que a OAB foi uma protagonista da construção da Lei de Anistia. “Ainda como um jovem estudante de direito, lembro das discussões sobre o modelo de anistia. A OAB participou e foi construtora deste modelo”, disse.
Como já era esperado, o ministro Marco Aurélio também votou pela improcedência da ação apresentada pela OAB. Ele destacou que não enxergava motivo nem mesmo para julgar a ação, já que não existiria, segundo ele, controvérsia jurídica no caso. Ele, que costuma qualificar o regime militar como um “mal necessário”, havia adiantado posteriormente que considera a anistia uma “virada de página”.
Também votou contra a ação da OAB o ministro Celso de Mello, que finalizou seu discurso dizendo que “a improcedência da ação não impõe nenhum óbice da verdade e da preservação da memória histórica”.
Mais sobre a Lei de Anistia
O movimento que levou ao projeto e à sanção da Lei de Anistia começou logo após a instituição do regime militar, em 1964. No início, apenas intelectuais e lideranças políticas que tiveram seus direitos cassados faziam parte do movimento. Depois, a proposta ganhou a sociedade conforme aumentava a repressão por parte da ditadura.
No final da década de 70, sob forte pressão popular e já em processo de liberalização, o então presidente general João Baptista Figueiredo encaminhou o projeto de lei ao Congresso, que o aprovou. A lei foi sancionada no dia 28 de agosto de 1979.