Carta Maior
Saul Leblon
Franklin Roosevelt, o presidente americano frequentemente evocado quando se trata de buscar um paradigma à altura das tarefas colocadas pela crise mundial, tomou posse no dia 3 de março de 1933. Era uma sexta-feira e neste caso detalhes de calendário têm um significado política como se verá a seguir.
No domingo, dia 5, Roosevelt emitiria uma nota convocando o Congresso dos EUA para sessão extraordinária que deveria ocorrer na quinta-feira, dia 9. Não detalhou a pauta, mas trabalharia exaustivamente sobre ela nas horas seguintes. A uma da madrugada, já na segunda-feira, dia 6, o presidente democrata socorreu-se de uma lei da Primeira Guerra Mundial que confere poderes adicionais ao chefe de Estado norte-americano tanto na esfera monetária quanto cambial. Roosevelt decretou um feriado bancário de quatro dias, assegurando-se de que não haveria corrida às agências até a sessão legislativa.
As precauções eram justificáveis. A insegurança, a especulação e o desemprego faiscavam por todo o país. O medo do futuro sentava-se à mesa de milhões de lares sem ter sido convidado.
O emprego, a casa, a comida e o dinheiro estavam por um fio.
Independente de quantas voltas a chave pudesse girar na fechadura , nada, nem ninguém, podia sentir-se em posição confortável naquele momento. Não havia um centímetro de chão sólido no imaginário norte-americano em março de 1933.
Bolsas, bancos, fundos, grande conglomerados, advogados, políticos e justiça compunham diante da sociedade a caricatura de um enorme ladravaz. Uma bocarra disposta a devorar até a última lasca da economia em benefício próprio. A ameaça do futuro resmungava sua língua pestilenta em cada esquina.
A estrutura bancária dos EUA era uma montanha desordenada de reputações em ruína; rachaduras abriam-se em fendas até se tornarem buracos sem fundo do dia para a noite. Notícias de demissões faziam fila de espera nas manchetes de jornais. Havia a percepção crescente de que as autoridades estavam à reboque dos acontecimentos, engasgavam com as notícias no café da manhã; à noite rezavam em silêncio pelo dia seguinte. Números azedos comandavam a economia sem que se erguesse uma voz capaz de comandá-los.
O monólogo dos tempos difíceis ia impondo sua ordem unida na frente da produção, na do dinheiro, do emprego e da política.
A percepção de que as rédeas escapavam às mãos que deveriam controlá-las fornecia a ração diária de ceticismo e pânico que engrossava a cintura do colapso econômico. O relógio da crise adiantava seu despertar a cada dia. O salve-se quem puder de cada unidade produtiva fornecia combustível à imolação coletiva.
Na semana em que Roosevelt assumiu a presidência dos EUA, o país tinha proporcionalmente o maior contingente de desempregados do mundo. Mais de 14 milhões de pessoas perambulavam pelas cidades e estradas sem trabalho, número que somado às respectivas famílias equivalia uma população maior que a da Inglaterra. A perda de confiança no futuro funcionava como uma empresa demolidora; milhões de marretas anônimas trabalhavam dia e noite para desmontar o que restava do alicerce social e econômico.
É nesse ponto que o timming das ações do governo – de qualquer governo – fazem enorme diferença.
Cada gesto, cada decisão, cada anúncio adquirem uma dimensão estratégica; a forma como as providências são comunicadas, ademais de sua contundência sobre a qual não pode pairar dúvida, ou se revelam inócuas – ganha importância de variável histórico insubstituível.
Uma crise tem um tempo certo para ser derrotada, ou derrotará o governo –a produção e o emprego – que vacilar diante dela.
Nisso, sobretudo nisso, Roosevelt revelou-se o estadista cuja habilidade ainda tem lições a oferecer aos seus contemporâneos; inclusive no Brasil onde o colapso da ordem neoliberal já arromba fronteiras da economia, da política e do imaginário social.
A primeira lição de Roosevelt: a rapidez em ocupar a frente do processo; contemporizar seria a capitulação.
Em apenas uma semana de mandato ele tomou algumas decisões que não exorcizaram todos os demônios, mas foram afrontá-los em seu próprio campo. Olhando esse momento histórico a partir do mirante crítico de 2009, não se pode dizer que foram medida acanhadas. Hoje ainda elas sugerem tudo menos tibieza e hesitação diante do grande vendaval que se forma quando o pânico e o dinheiro se encontram numa mesma esquina.
Quantos dos atuais chefes de Estado teriam a coragem de anunciar, quase 70 anos depois, o que Roosevelt proclamou naqueles idos de março de1933?
Os tempos são outros, alega-se. A globalização tornou tudo mais difícil, justificam aqueles que ocultam sua hesitação nas dificuldades do presente para ofuscar o componente de coragem dos personagens do passado.
Em 12 de março ao fazer seu segundo discurso à Nação, Roosevelt trazia alguns troféus do primeiro round de uma luta que se estenderia até 1944, quando os EUA declararam guerra ao Eixo. Só então, de fato, seu potencial produtivo pode, finalmente, ser acionado a plena carga para desvencilhar-se da recessão, graças às encomendas bélicas.
Muitos relativizam o alcance das medidas anti-cíclicas tomadas nos 11 anos que antecederam esse momento. Mas poucos lembram de se perguntar o que teria acontecido com o presidente democrata, reeleito quatro vezes (de 1933 a 1945), se a sua autoridade tivesse fraquejada no primeiro mandato, na primeira semana ou no primeiro dia de março.
É sobre isso que os chefes de Estado de hoje deveriam refletir em vez de adiarem decisões num dominó protelatório à espera de um milagre de auto-ajuste do nercado; ou da caneta tinteiro redentora de Barack Obama.
O maior desafio é exorcizar aquele risco apontado por Roosevelt no discurso de posse exaustivamente citado em palavrórios oficiais, mas pouca vezes assumido na prática: diante de uma crise divisora, só devemos temer o nosso próprio medo.
O torpor imobilizante parece ter contaminado até um pedaço da esquerda diante de um colapso , batizada por Chico de Oliveira como a primeira grande crise da globalização capitalista – uma crise clássica de realização do valor, declarou o sociólogo em entrevista à Carta Maior.
Sua especificidade estaria no fato de não ter origem num centro geográfico, mas na engrenagem planetária irrestrita consolidada pelo capital. O motor do monstro insaciável que avança de mercado a mercado com apetite de saco sem fundo seria a impossibilidade de realização da mais-valia extraída das novas frentes de exploração abertas nos últimos 20 anos, sobretudo na Ásia, mas também no leste europeu. Essas novas fronteiras fizeram mais que dobrar a oferta de mão-de-obra, barateando o custo do trabalho urbi et orbe.
No primeiro momento do ciclo – quando FHC enxergou a emergência um novo “renascimento” no apogeu do Consenso de Washington,- detentores de capital fictício experimentariam fastígio e glória inigualáveis; agora, na reversão, sobrevém o colapso abrupto, o derretimento financeiro incontrolável, o desemprego assustador em todo o globo.
Ao risco da simplificação, vale a fórmula: se a extração da mais-valia implica que uma parte da riqueza produzida não é paga ao produtor, padece o sistema de um desequilíbrio inerente que se amplia na proporção em que se expande a engrenagem. Um pedaço cada vez maior do valor gerado não encontra meios para se realizar. Marx ensinou que as crises de superprodução – de capital e de capacidade produtiva – são o apanágio do sistema baseado na propriedade privada dos meios de produção. Estamos diante de uma delas. De abrangência e agressividade proporcional às dimensões magnificadas pela globalização capitalista.
Decorre desta característica uma parte da perplexidade que a crise fomenta e diante da qual se agiganta a lição de timming político de Roosevelt.
Em 1929 havia pouca clareza teórica – exceto para marxistas e mesmo assim com grau de sofisticação restrito a franjas minoritárias – sobre a natureza da crise irradiada dos EUA. Marx era esconjurado; Keynes apenas buscava legitimidade e nem Roosevelt apostaria nele num primeiro momento.
A ignorância pode ter facilitado o desassombro. Hoje dá-se o oposto. O objeto é razoavelmente conhecido, mas paradoxalmente intangível dada a abrangência planetária de sua mecânica e a ausência de instituições correspondentes.
O antídoto implícito na narrativa conservadora – a regularização das finanças ensandecidas – resume-se ao de sempre: dinheiro público a rodo e substituição da história pela moralidade. Alguns “imorais”, como o mega-golpista Madoff, serão condenados à fogueira. Sabe-se que no fundo apenas protagonizam a busca insaciável do sistema pelo santo Graal da acumulação pura -o sonho ancestral burguês desde o dia seguinte da Revolução francesa. Ontem, como hoje, o capital que se livrar das amarras da história, buscando um porto-seguro onde a reprodução desdobre-se em dízima dele mesmo (D-D). Finalmente entoa estaria livre dos encargos trabalhistas, das greves, dos Morales e suas constituições refundadoras. No nirvana do dinheiro, as circunstâncias abrigadas na danação marxista do D-M-D sumiriam. O mercado, a mídia, os milionários e os especuladores levitaram nessa bolha até o estouro ensurdecedor das sub-primes nos EUA.
A verdade, porém, é que se a globalização ampliou as condições para a utopia capitalista, o dragão afrontado por Roosevelt em 1933 exalava as mesmas obsessões. E, mais que hoje, ele não dispunha também de nenhuma estrutura internacional com a qual se aliar ou dividir tarefas.
Seu valioso contrapeso era intuição política para atuar no vácuo da crise sem se deixar engolir por ela, mesmo quando hesitava.
Foi assim que fez o Congresso discutir e aprovar, em um único dia, uma Lei de Emergência Bancária em rito fulminante, na quinta-feira, dia 9, seis dias depois da posse.
Para se ter uma medida de comparação, basta dizer que hoje o conservadorismo brasileiro não aceita, sequer, que o Presidente da República tenha influência sobre o Banco Central. A Emergência Bancária, ao contrário, facultava a ingerência estatal sobre todo o sistema financeiro público e privado dos EUA. Com tais poderes, Roosevelt colocou as instituições -sadias, poucas; e podres, a maioria – sob custódia federal, numa espécie de estatização branca, ainda que temporária, mas radical e impiedosa com o rentistismo.
Naturalmente, estamos falando de um democrata progressista com forte dosagem de austeridade conservadora e não de um bolchevique – e nisso se assemelha muito à cabeça de alguns líderes progressistas, como o Presidente Lula, por exemplo. A exemplo deles, Roosevelt não pretendia liderar uma revolução para derrubar o capitalismo. Queria reformá-lo para que pudesse outra vez fazer prosperar o emprego e a produção, eliminar a fome e a miséria no seio das famílias.
Ao contrário de alguns desses líderes da atualidade, tinha a vantagem de saber que isso não aconteceria sem erradicar a especulação, a jogatina, a obesidade mórbida do rentismo que se atava à jugular do trabalhador e ao caixa da produção.
Em 1933, Roosevelt sabia intuitivamente o que hoje é um consenso teórico, mas não político. Para salvar a economia do colapso financeiro é preciso subordinar o crédito -portanto todo o sistema bancário- aos desígnios da produção, do emprego e do consumo. Nem que seja uma estatização temporária do crédito, como recomendou o professor Luiz Gonzaga Belluzzo em entrevista à Carta Maior, no início da crise (15-10-2008). Só o Estado é capaz de fazê-lo em tempo hábil, antes que a epidemia se alastre e derreta o metabolismo econômico.
A Lei de Emergência dava ao Estado norte-americano essa faculdade e Roosevelt a exerceu com rapidez e apetite de um estadista.
Enquanto seus potenciais seguidores patinam na hesitação em 2009, no longínquo de março de 1933, Franklin Roosevelt pode apresentar-se à Nação, apenas oito dias depois da posse, como um Presidente vencedor. Ele havia enfrentado o foco da doença in locu, submetendo o sistema bancário sem tergiversações. Vencera o primeiro round.
A incerteza foi duramente atingida. No domingo,dia 12 de março, quando estreou seu programa “Conversa junto à Lareira” , o Presidente tinha o que dizer; e milhões queriam ouvi-lo. Sua palavra estava sintonizada com o espírito das ruas e viria reforçar a espiral da auto-confiança em diferentes setores e segmentos.
As filas no guichê dos bancos já não eram mais para sacar depósitos. Agora elas reuniam cidadãos trazendo de volta suas economias porque o Estado lhes devolvera a garantia e a segurança no sistema.
Roosevelt foi além, na tarefa de devolver otimismo a uma sociedade acuada e sem futuro. Não se limitou a medidas rotineiras, nem confiou o destino da sociedade aos “canais convencionais’, tão a gosto dos acanhados chefes de Estado da atualidade.
Cada vez que falava à Nação, a voz de Roosevelt dizia coisas inteligíveis à angústia do pai de família que acordara empregado e fora dormir demitido. Suas mensagens e políticas pavimentavam o futuro sem negligenciar a emergência. Traziam respostas para o presente.
Multiplicar providências imediatas para sacudir a sociedade entorpecida pelo medo e a descrença, esse foi o seu objetivo ao criar a Administração para o Progresso do Trabalho. Com ela encarou o desafio de enxugar imediatamente a inundação de desemprego que afogava as famílias, as cidades e o interior do país. A mensagem era simples e convincente: os EUA foram divididos em zonas salariais; para cada uma delas fixou-se um seguro-salário proporcional; o governo passou a contratar até três milhões de trabalhadores por ano, em troca desse pagamento. A nova força-tarefa semearia canteiros de obra pelo país; estradas, ruas, escolas, canalizações, hospitais, parques infantis, pontes, caminhos vicinais foram recuperados, expandidos e construídos.
A Administração para o Progresso do Trabalho ganhou um braço cultural. Em um mês inauguraria 100 mil salas de alfabetização com um milhão de adultos inscritos na luta contra o analfabetismo. Artistas e escritores desempregados foram engajados também. Sua mobilização desencadearia uma revolução cultural ampliando as franjas de apoio progressista ao governo, taxado de comunista pela direita raivosa e a mídia cínica. O Presidente também convocou a juventude.Milhares de jovens foram incorporados a serviços florestais dando vida a planos de replantio de matas, preservação e proteção de bosques.
O democrata austero continuou falando ao futuro e à angústia do presente. Na Conversa ao Pé da Lareira de outubro de 1933. Roosevelt deu um aviso ensurdecedor aos ouvidos da crise: se houver qualquer família nos EUA, disse, a ponto de perder a casa em que mora, a terra, ou seus pertences, essa família deverá telegrafar imediatamente para a Administração de Crédito Rural ou à Companhia de Empréstimo aos Proprietários de Residência; ela receberá o auxílio de que necessita.
Para além das discussões técnicas sobre a viabilidade ou não de um novo New Deal, sobretudo na periferia do capitalismo,. há uma lição de extrema atualidade a extrair dessa prontidão exibida pelo governo democrata de Franklin Roosevelt.
Ele tinha a exata noção de que quando o extraordinário acontece, as ferramentas da rotina têm pouca eficácia e serventia. Antes de sensatez, ensejam fracassos e derrotas.
Esse talvez seja o principal legado que a experiência dos anos 30 tem a oferecer aos governantes progressistas que continuam a contemporizar de forma temerária ante as evidências de agravamento do colapso mundial. Mas não só eles. O paradigma do desassombro, associado ao realismo, convoca também sujeitos coletivos, como o Fórum Social Mundial. Deles se espera agendas e respostas a salvo da dispersão e do descompromisso em relação às ansiedades e urgências da sociedade, neste divisor da história.