Multinacionais admitem no TST danos à saúde dos trabalhadores de Paulínia

Trabalhadores protestam em frente à empresa Raízen (antiga Shell)

Rede Brasil Atual
Cida de Oliveira

Em audiência na tarde desta quinta-feira 14, no Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília, a Raízen Combustíveis (antiga Shell Brasil) propôs um fundo de R$ 50 milhões para o tratamento médico dos ex-trabalhadores. Pela proposta, os procedimentos devem ser administrados pelas próprias vítimas e o valor do fundo pode ser reajustado conforme necessidade. A empresa garantiu a oferta de atendimento hospitalar de emergência e propôs indenizações individuais calculadas conforme o período trabalhado. A média, por grupo familiar, pode variar entre R$ 120 mil e R$ 330 mil.

Na conciliação, foi apresentada ainda proposta de pagamento para as famílias que optarem por não receber o tratamento de saúde, com a possibilidade de abrir negociações individuais caso o acordo geral não seja aceito – o que preocupa representantes dos trabalhadores e do Ministério Público. Embora a companhia pretende indenizar 884 trabalhadores e dependentes, o Ministério Público do Trabalho acredita que o número correto de vítimas é maior: 1.068.

Para o advogado Vinicius Cascone, do Sindicato Químicos Unificados, a proposta apresentada sinaliza o reconhecimento inédito de que os trabalhadores da antiga planta industrial de Paulínia, que pertenceu à Shell e à Basf, é um avanço. “Ao proporem uma forma de custeio do tratamento, as empresas admitiram que a saúde dos trabalhadores foi afetada no ambiente de trabalho”, disse. No entanto, segundo ele, os pontos apresentados são muito genéricos e devem ser analisados cuidadosamente. Segundo o Sindicato Químicos Unificados, 61 ex-trabalhadores morreram devido à contaminação.

Além do custeio de assistência médica vitalícia para os ex-trabalhadores e seus dependentes, o processo, que corre desde 2007 e é considerado o maior da Justiça do Trabalho, reivindica indenização por danos morais coletivos. O Ministério Público e sindicatos de ex-funcionários cobram reparação das empresas devido à contaminação por substâncias tóxicas emitidas pelo complexo industrial, criado em 1970. Na primeira e segunda instâncias, as empresas foram condenadas a pagar tratamento médico aos trabalhadores e familiares, além de danos morais e materiais, com valor atualizado em cerca de R$ 1 bilhão.

Na próxima terça-feira (19) haverá reunião no Ministério Público do Trabalho (MPT) para a discussão da proposta. e uma nova audiência deve ocorrer no TST no dia 28. Se não houver acordo, a proposta de conciliação será apresentada pelo mediador, o presidente do TST, João Oreste Dalazen.

Histórico

Em 1977, a Shell instalou no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia, uma fábrica de agrotóxicos usados para pulverização rural. Durante décadas, centenas de trabalhadores manusearam substâncias altamente tóxicas, compostas por substâncias com potencial cancerígeno, além de respirarem metais pesados e outros componentes químicos que eram queimados nas caldeiras da fábrica.

A área em Paulínia abrigou a Shell até 1995. Naquele ano, parte da área foi vendida para a American Cyanamid CO., que obrigou a Shell a realizar, como condição do negócio de compra e venda, uma auditoria ambiental que, ao final, acusou a contaminação de água e solo locais. A partir de então, a Shell apresentou a situação à Curadoria do Meio Ambiente de Paulínia, da qual resultou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). No documento, a Shell reconheceu a contaminação do solo e das águas subterrâneas por produtos denominados aldrin, endrin e dieldrin.

Após os resultados das análises toxicológicas, a agência ambiental entendeu que a água das proximidades da indústria não poderia mais ser utilizada, o que levou a Shell a adquirir todas as plantações de legumes e verduras das chácaras do entorno e a fornecer água potável para as populações vizinhas. Mesmo nas áreas residenciais no entorno da empresa, foram verificadas concentrações de metais pesados e de pesticidas clorados no solo e em amostras de águas subterrâneas.

Em 2000, a Basf comprou a Cyanamid e manteve a mesma atividade industrial, inclusive a produção de azodrin. Após receber uma série de denúncias e informações que ganharam notoriedade, o MPT instaurou inquérito civil em face das empresas Shell e Basf, com o objetivo de apurar e de reparar possíveis danos à coletividade e à saúde dos trabalhadores.

Em dezembro de 2002, a Basf S/A encerrou suas atividades na unidade de Paulínia, o que implicaria dispensa das pessoas que trabalhavam no local. Nessa mesma época, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em ação conjunta com o MPT, interditou todas as atividades da planta. A dispensa dos trabalhadores ficou condicionada ao esclarecimento dos impactos da contaminação ambiental sobre a saúde de todos eles.

Em maio de 2004, o MPT solicitou o apoio do Ministério da Saúde (MS) para a análise de aproximadamente 30 mil laudas referentes à contaminação ambiental e à exposição de trabalhadores das empresas Shell, Cyanamid e Basf. O trabalho teve como objetivo avaliar os riscos de exposição dos ex-trabalhadores das empresas a diversos contaminantes. O MS contratou consultoria especializada para realizar o estudo in loco.

Na área de formulação, construída durante o período de 1977 a 1982, os estudos realizados comprovaram a contaminação do solo e da água subterrânea por compostos aromáticos, hidrocarbonetos halogenados, pesticidas e hidrocarbonetos diversos. Os levantamentos realizados indicavam que o “solo superficial” estava contaminado com os compostos DDT, aldrin e endrin. Nas amostras de solo “sub-superficial” foram encontradas mais de 20 substâncias tóxicas em níveis bem acima do valor considerado aceitável para o organismo humano.

Na planta em que era feita a produção de organofosforados, as amostras de solo indicaram a presença de contaminantes em concentrações altíssimas. Em geral, os compostos tóxicos analisados em todas as unidades da fábrica eram agrotóxicos organoclorados ou solventes.

Segundo a conclusão do estudo do MS, essas substâncias causam câncer e podem ter efeitos nocivos na geração seguinte, sob a forma de malformações congênitas ou desenvolvimento de tumores nos descendentes das pessoas expostas. Por fim, o relatório final do MS indica a necessidade de acompanhar a saúde dos ex-trabalhadores, cônjuges e filhos.

Com base no estudo do MS, o MPT firmou TAC com os municípios de Campinas e Paulínia, onde os entes públicos se comprometeram a formular um protocolo de atendimento à saúde da população exposta à contaminação no CISP (Centro Industrial Shell Paulínia). Posteriormente, outro TAC foi firmado para dar início à implementação do protocolo.

Em março de 2007, o Ministério Público do Trabalho ajuizou uma ação civil pública junto com Atesq, ACPO e Instituto Barão de Mauá em face das empresas Shell e Basf.

Entre outros requerimentos, pediu-se a antecipação da tutela para que fossem contratados planos de saúde vitalícios em benefício dos ex-trabalhadores atingidos e de seus familiares. O valor estimado para a causa chegava aos R$ 620 milhões, considerada a pretensão de reparação dos danos causados a interesses difusos e coletivos, cuja indenização seria revertida ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Contudo, no julgamento do mérito, a Justiça do Trabalho de Paulínia condenou as empresas a custearem o tratamento médico de todos os ex-trabalhadores da unidade de fabricação de agrotóxicos, assim como de seus filhos, e a pagar uma indenização por danos morais no valor total de R$ 1,1 bilhão.

Segundo a sentença da juíza Maria Inês Corrêa de Cerqueira César Targa, da 2ª Vara do Trabalho de Paulínia, a cobertura médica deve abranger consultas, exames e todo o tipo de tratamento médico, nutricional, psicológico, fisioterapêutico e terapêutico, além de internações.

“A contaminação a que se expuseram os trabalhadores não ocorria, apenas, nos momentos em que se encontravam em seus postos de trabalho, mas em todo o período em que se encontravam no Recanto dos Pássaros, local onde foi instalado o parque fabril e hoje isolado. No início, no final da jornada, nos intervalos, no trânsito pela área externa do parque fabril, na utilização da água ofertada no local, a exposição aos contaminantes se mantinha e os trabalhadores não estavam, nestes momentos, utilizando equipamentos de proteção que, de qualquer forma, não os impedia de respirar o ar contaminado e de ingerir a água que lhes era ofertada. Não se pode, portanto, admitir a tese simplista da Shell de que a existência de substâncias tóxicas no corpo humano, por si só, não configura intoxicação”, afirma a juíza, “(…) e se não é certo afirmar que todos os trabalhadores desenvolverão doenças como o câncer, também não se pode afirmar de que doenças ficarão alijados. O fato já detectado é que, na população exposta aos contaminantes já descritos, a incidência de câncer é sobremaneira maior do que nas demais populações”, diz a decisão.

Cada ex-trabalhador e cada filho de ex-trabalhador nascido durante ou depois da prestação de serviços deverá receber o montante de R$ 64.500, indenização que se refere à protelação do processo pelas empresas. Este valor será acrescido de juros e correção monetária a partir da sentença e de mais R$ 1.500 por mês caso não seja feito o reembolso mensal das despesas nos meses seguintes.

As empresas também foram condenadas ao pagamento de indenização por danos morais causados à coletividade no valor de R$ 622,2 milhões, reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Na data da sentença, o valor com juros e correção já estava na casa dos R$ 761 milhões.

As multinacionais devem constituir um comitê gestor do pagamento da assistência médica. Se descumprir a obrigação, as empresas devem pagar multa diária no valor de R$ 100 mil.

O Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região negou recurso impetrado pelas empresas Shell do Brasil e Basf S/A contra decisão em primeira instância que condena as multinacionais ao custeio de tratamento de saúde de ex-funcionários e ao pagamento de uma indenização bilionária por danos morais.

O acórdão proferido pelo TRT mantém a sentença da Vara do Trabalho de Paulínia, que também abrange filhos de empregados que nasceram durante ou após a prestação de serviços, autônomos e terceirizados.

Com informações da Agência Brasil e do Sindicato Químicos Unidos

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