Aquela energia multifacetada canalizada pelas ruas pré-definidas de Belém parecia estar justamente querendo dizer que ainda falta canalizar também tantas idéias generosas por uma larga avenida que expresse um programa coerente de mudanças.
Por Marcos Dantas*
Carta Maior
E lá vão os jovens. Cerca de 100 mil pessoas multicoloridas, em sua imensa maioria jovens, ocuparam as ruas centrais de Belém, debaixo de uma chuva amazônica, para expressar, com batucada e festa, seus sonhos por um outro mundo possível. Comovente. Emocionante. Alegre. Com certeza, a juventude ainda é revolucionária.
Mas quem olhasse aquela festa sem atenção, pensaria estar vendo uma multidão disforme. Como nas ruas do carnaval. Olhando com atenção, a multidão começava a tomar forma. Aqui um grupo vestido de negro, ostentando vastas perucas cor de abóbora. Logo em seguida, um grupo sacudia seus abadás multicoloridos. Ali, mulheres de verde e preto carregando faixas feministas. Agora, grupos de índios cantando e dançando à moda índia. Uma banda de metais toca sambas carnavalescos.
E um grupo passa fazendo soar algo como uma timbalada em instrumentos de lata, vasilhames de plástico, desses de gelar cerveja, até mesmo um botijão de gás. Magotes de jovens cantam um hino cuja melodia é bem conhecida da torcida do Flamengo: “Eu sou brasileiro/com muito orgulho/…”. Bonés vermelhos identificam um conjunto de petistas. Bandeiras indicam que por ali vai a turma do PSOL. E, claro, não faltam sons que soam ritmados, lembrando palavras de ordem. Vibrações sonoras vêm daquele grupo ali à esquerda. Vibrações distintas, desse grupo aqui à direita. Ou daquele mais atrás. Sem dúvida, todos querem fazer ouvir suas vozes, seus desejos, suas utopias. Só que quase nunca dá para saber o que dizem. Logo, o que pensam. Pelas largas e arborizadas avenidas de Belém, passa entusiasmada uma enorme cacofonia.
É o espírito do Fórum. Que cada um ponha as suas cores, que cada uma entoe suas palavras de ordem, que qualquer um cante o seu samba ou o seu som da floresta. Mesmo que ninguém possa perceber qual rumo tomará toda essa energia.
No entanto, havia um rumo. O roteiro pré-traçado da passeata. Traçado por quem? Claro que não o foi por uma decisão coletiva daquelas 100 mil pessoas. Um comitê, uma comissão, algum grupo responsável e legítimo o decidiu, e decidiu em comum acordo com as autoridades da cidade. Só porque havia um rumo traçado pelas ruas de Belém, se podia dizer que ali vivenciávamos uma grande e bela manifestação. Imagine-se que, além da algaravia de sons e do caleidoscópio de cores, cada um daqueles mais de cem grupos – sim, eles eram muito para lá de cem -, imagine-se que cada um, em nome de sua reivindicada autonomia, decidisse traçar o seu próprio rumo, decidisse por quais ruas mais lhe interessariam marchar. A cidade talvez fosse tomada por sons e cores. Belém é grande. Espalhados por aqui e por ali, eles pareceriam grupelhos. Não dariam a quem visse e ouvisse, toda a real dimensão daquela força. E dariam, a quem visse e ouvisse, tão somente um pequeno fragmento das idéias em torno da qual o Fórum se reúne, há nove anos. Alguém saberia que o grupo de vermelho quer isso. Mas sequer saberia que existe também um grupo de amarelo querendo aquilo.
Era difícil, de fato, saber pelo que lutam cada uma dessas centenas de grupos. Mas era impossível não saber que, neste mundo de hoje, milhões de pessoas, representadas por aquelas cem mil, querem viver numa sociedade melhor do que esta, ou distinta desta. Que sociedade?
Impossível dizer, pois cada grupo parece projetar esse outro mundo como extensão de seu exclusivo problema. Entretanto, aquela energia multifacetada canalizada pelas ruas pré-definidas de Belém parecia estar justamente querendo dizer que ainda falta canalizar também tantas idéias generosas por uma larga avenida que expresse um programa coerente de mudanças. Queremos mudar – sim! Mas falta o roteiro desta marcha.
*Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, doutor em Engenharia de Produção pela COPP-UFRJ e autor de “A lógica do capital-informação: da fragmentação dos monopólios à monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais” (Ed. Contraponto).