João Brant (*)
Carta Capital
Há chances de o marco civil da Internet ser votado nesta terça-feira, 16, na Câmara dos Deputados. As jornadas de junho e as revelações de Edward Snowden sobre os esquemas de espionagem dos Estados Unidos criaram espaço para que Projeto de Lei 2126/11, parado desde dezembro, voltasse a ter chances de aprovação.
Para quem não acompanha de perto, vale esclarecer: o marco civil é um projeto de lei que, basicamente, estabelece os direitos do usuário da internet, no Brasil. Na prática, servirá para impor limites às ações das empresas e do Estado em relação à rede, de forma a garantir que a internet continue uma rede aberta e livre, ao mesmo tempo em que se aprofundam direitos como acesso e privacidade.
O principal obstáculo para aprovação do projeto é a posição das empresas de telecomunicações contra a neutralidade de rede. Este princípio garante que todo o tráfego da internet seja feito de maneira isonômica, “sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicativo”.
Na prática, a aprovação deste princípio impede várias situações:
1) as empresas não poderão degradar o tráfego de alguns aplicativos a seu critério. Por exemplo: a Oi não tem interesse que o usuário use Skype, porque isso diminui seu faturamento com ligações interurbanas, então ela pode ‘farejar’ os pacotes da internet, perceber que aqueles dados se referem ao Skype e diminuir sua velocidade para desencorajar o usuário a usar o serviço. Embora essa prática já possa ser considerada ilegal, a lei deixaria isso claro;
2) as empresas de telecomunicações não poderiam vender pacotes que diferenciam a internet por critérios da velocidade. Hoje, há pacotes que incluem apenas alguns sites e aplicativos. Isso permite às empresas de telecomunicações dois tipos de prática: criar pacotes diferenciados, de acordo com os serviços mais utilizados (por exemplo, internet com vídeos ser mais cara que internet sem vídeos) e estabelecer acordos comerciais com empresas para que só o site dela possa ser acessado (por exemplo, compre este pacote barato e acesse seu e-mail, o Facebook e o site de determinada empresa);
3) outra prática impedida é a de estabelecer acordos comerciais com grandes provedores de aplicações (como Google/YouTube e Facebook) para garantir prioridade de tráfego. O problema dessa opção não é tirar recursos dos grandes, mas criar dificuldades e barreiras comerciais para os pequenos.
Ou seja, a lei impede que vários parâmetros da internet, que hoje são tratados majoritariamente de forma neutra, sejam transformados em mercadoria. Em outras palavras: impede que as empresas criem dificuldade para vender facilidade. Sem esse princípio, em pouco tempo, a internet deixará de ser como conhecemos. Ela ficará mais próxima de um serviço de TV a cabo, em que a operadora tem controle sobre o que é transmitido, impedindo que toda a oferta de conteúdo se dê em bases isonômicas, além da possibilidade de vender pacotes diferentes para o usuário, impedindo também que o acesso se dê em bases isonômicas.
Na negociação do texto, uma das propostas das empresas foi retirar a obrigação de tratar os pacotes de forma isonômica em relação ao serviço. Elas querem garantir pelo menos que os exemplos 2 e 3 acima sejam permitidos. O problema é que na palavra “serviço” reside a garantia da manutenção da internet como a conhecemos. O que parece um ajuste de texto é uma descaracterização total do projeto.
Há ainda outros pontos polêmicos no marco civil. Por pressão de grandes produtores de conteúdo, em especial da Rede Globo, o projeto dá tratamento diferenciado à retirada de conteúdo que infrinja direitos autorais. Ele diz o seguinte: “os provedores de aplicações não podem ser responsabilizados por danos de conteúdo alimentado por terceiros”.
Até aí, ótimo, porque a responsabilidade tem de cair especificamente em quem aporta esses conteúdos. O problema é que a regra não vale para infrações de direitos autorais. Isto vai criar sobre esses provedores (como YouTube e Facebook) uma enorme pressão pela retirada imediata de conteúdos que possam vir a ser considerados infringentes mesmo sem qualquer ordem judicial. Na prática, uma restrição grave à liberdade de expressão dos usuários e uma super proteção aos detentores de direitos autorais.
O marco civil está longe de resolver todos os problemas relativos à internet. Ele não garante a proteção de dados pessoais, mas para isso há um projeto específico sendo elaborado. Ele não cria mecanismos para enfrentar o poder de mercado avassalador de empresas como Google e Facebook, embora a proposta de inclusão que está sendo feita pelo Governo, que obriga essas empresas a manter os registros de acesso a essas aplicações também no Brasil, possa ajudar nisso. Mesmo com esses limites, o marco civil é um passo inicial indispensável; sem ele, seguiremos totalmente vulneráveis ao poder econômico das grandes corporações.
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(*) João Brant é membro do Intervozes e doutorando em Ciência Política na Universidade de São Paulo.