Artigo Emir Sader
Do segundo governo Lula depende o futuro da esquerda e do Brasil por um longo período. A vitória eleitoral de 2002 foi o resultado de um longo processo de lutas e de acumulaçáo de forças de cerca de um quarto de século por parte do movimento popular, primeiro para terminar com a ditadura, em seguida para eleger pelo voto direto o presidente da República, depois pela resisténcia às políticas neoliberais. Lula foi eleito como resultado desse caminho.
Seu primeiro governo foi um misto de continuidade e de mudança e, como conseqüência direta, de decepções e de esperanças. No que manteve, o governo Lula esteve mal: priorizou a estabilidade monetária, personificada na ditadura de Palocci por quase todo o primeiro mandato, congelando recursos para as politicas sociais, mantendo a taxa de juros reais mais alta do mundo, bloqueando a capacidade de crescimento e de distribuição de renda do país, apesar do cenário internacional muito favorável.
Os melhores aspectos do governo vieram do que Lula mudou: mudaram a política internacional, a educacional, a de cultura, a política social. O Brasil passou a privilegiar a integração regional em vez dos tratados de livre comércio, promoveu a formação do Grupo dos 20 – que permitiu a reaparição do Sul do mundo no cenário mundial -, assim como as alianças Sul-Sul, com a China, a Índia, a África do Sul, entre outros parceiros. A política educacional brecou a privataria do governo anterior, fortalecendo o ensino público, tanto nas universidades públicas quanto no ensino básico e médio. Pela primeira vez o Brasil pôde dispor de uma verdadeira politica cultural de raízes nacionais e abrangência que chega a todo o território nacional.
Em suma, no que mudou, o governo foi bem, no que preservou, esteve mal. As crises mais recentes, como a da aviação comercial, apontam na mesma direção: representam o fracasso do Estado mínimo, sem capacidade de regulação, como foi herdado o aparato estatal do governo FHC. Quando o Estado interveio mais vigorosamente – como nos exemplos claros dos sucessos da Petrobras, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Caixa Econômica Federal -, o governo teve sucessos.
A direita foi derrotada nas eleiçóes de 2006. Sobre isso não há dúvida. O candidato que defendia o retorno puro e duro às politicas do governo FHC, o neoliberalismo ortodoxo, as privatizações, a retração ainda maior do Estado, o livre comércio, a Alca e a repressão aos movimentos sociais recebeu a rejeiçáo do povo brasileiro, apesar do apoio praticamente unânime da grande mídia. Mas ganhou a esquerda?
Mais além da discussão nominal sobre se se trata de um governo de esquerda ou não, a esquerda deu o tom da campanha do segundo turno. E foi esse discurso que levou à vitória insofismável de Lula. Algo disso tem que ter ficado em Lula, mas o retorno ao rame rame cotidiano do Planalto gera medo de que o governo perca o seu primeiro ano, período essencial para imprimir um selo definitivamente democrático e popular ao governo.
Para que isso aconteça, o país não pode continuar a ser dessangrado pelos ganhos especulativos, predatórios, sanguessugas. Se a economia cresce a níveis muito baixos e o capital financeiro ganha muito, o país, a grande maioria da população, perde. A taxa de juros mais alta do mundo remunera o capital improdutivo, parasitário, atrai esse tipo de capital espoliador do exterior ao invés de incentivar, aqui dentro, e atrair de fora, investimentos produtivos. O capital especulativo não cria riquezas (e apenas transfere os ganhos, incentivando a concentração de renda) e não gera empregos. Em suma, é o adversário central de um governo que se pretende popular e democrático.
Mas é preciso, além de combater o poder do dinheiro saindo do modelo econômico neoliberal, lutar contra os outros dois eixos do poder mundial antidemocrático atualmente vigente: o poder monopólico das armas e da palavra. Contra o poder da hegemonia imperial, se luta aprofundando e estendendo o Mercosul e os outros processos de integração regional e de alianças Sul-Sul, contribuindo para a construção de um mundo multipolar.
Mas o poder monopólico local e mundial se sustenta também sobre o poder da palavra. Lula ganhou derrotando o poder oligopólico da mídia. Demonstra que a opinião do povo, quando este é chamado a dar sua palavra, se choca com o que cotidianamente se tenta inculcá-lo a partir da máquina antidemocrática de fabricar consensos. Da capacidade de dar expressão a esse Brasil pobre, solidário e progressista depende as transformações pelas que o país votou majoritariamente e as mudanças também dos valores e das crenças dominantes.
Fonte Carta Maior
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