José Luís Fiori: o mito do colapso americano

José Luís Fiori
Valor Econômico

Na segunda feira, 6 de outubro de 2008, a crise financeira americana desembarcou na Europa e repercutiu em todo mundo de forma violenta. As principais Bolsas de Valores do mundo tiveram quedas expressivas, e governos e bancos centrais tiveram que intervir para manter a liquidez e o crédito de seus sistemas bancários. Neste momento, não cabem mais dúvidas: a crise financeira que começou pelo mercado imobiliário de alto risco dos EUA já se transformou numa crise profunda e global, destruiu uma quantidade fabulosa de riqueza e deverá atingir de forma mais ou menos extensa, desigual e prolongada, a economia real dos EUA e de todos os países do mundo. Muitos bancos e empresas seguirão quebrando, nascerão rapidamente novas regras e instituições, e haverá nos próximos meses uma gigantesca centralização do capital financeiro, sobretudo nos EUA e na Europa. Os bancos e organismos multinacionais seguem paralisados e impotentes e se aprofunda, por todo lado, a tendência à estatização de empresas, à regulação dos mercados e ao aumento do protecionismo e do nacionalismo econômico. De todos os pontos de vista, acabou a “era Tatcher/Reagan” e foi para o balaio da história o “modelo neoliberal” anglo-americano, junto com as idéias econômicas hegemônicas nos últimos 30 anos. Como contrapartida, mesmo sem fazer proselitismo explícito, deverá ganhar pontos, nos próximos meses e anos, em todas as latitudes, o “modelo chinês” nacional-estatista, centralizante e planejador.

No meio do tiroteio, é difícil de pensar. Talvez por isto, multiplicam-se, na imprensa e na academia, os adjetivos, as exclamações e as profecias apocalípticas, anunciando o fim da supremacia mundial do dólar e do poder global dos EUA, ou do próprio capitalismo americano. Na mesma hora em que os governos e investidores de todo mundo estão se refugiando no próprio dólar e nos títulos do Tesouro americano, apesar de sua baixíssima rentabilidade e apesar de que o epicentro da crise esteja nos EUA. E, o que é mais interessante, são os governos dos Estados que estariam ameaçando a supremacia americana os primeiros a se refugiarem na moeda e nos títulos americanos. Para explicar este comportamento aparentemente paradoxal, é preciso deixar de lado as teorias econômicas convencionais sobre o “padrão-ouro” e o “padrão-dólar”, e também as teorias políticas convencionais sobre as crises e “sucessões hegemônicas” dentro do sistema mundial.

Comecemos pelo paradoxo da “fuga para o dólar”, em resposta à crise do próprio dólar. Aqui é preciso entender algumas características específicas e fundamentais do sistema “dólar-flexível”. Desde a década de 1970, os EUA se transformaram no “mercado financeiro do mundo”, e o seu Banco Central (Fed), passou a emitir uma moeda nacional de circulação internacional, sem base metálica, administrada através das taxas de juros do próprio Fed e dos títulos emitidos pelo Tesouro americano, que atuam em todo mundo como lastro do sistema “dólar-flexível”. Por isto, a quase totalidade dos passivos externos americanos é denominada em dólares e praticamente todas as importações de bens e serviços dos EUA são pagas exclusivamente em dólar. Uma situação única que gera enorme assimetria entre o ajuste externo dos EUA e dos demais países. Por isto também, a remuneração em dólares dos passivos externos financeiros americanos que são todos denominados em dólar seguem de perto a trajetória das taxas de juros determinadas pela própria política monetária americana, configurando um caso único em que um país devedor determina a taxa de juros de sua própria “dívida externa”. Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta de forma exclusiva no poder político e econômico americano. Agora mesmo, por exemplo, para enfrentar a crise, o Tesouro americano emitirá novos títulos que serão comprados pelos governos e investidores de todo mundo, como justifica o influente economista chinês, Yuan Gangming, ao garantir que “é bom para a China investir muito nos EUA; porque não há muitas outras opções para suas reservas internacionais de quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos EUA são interdependentes”. (FSP, 24/11).

Mas, além disto, do ponto de vista da hierarquia mundial, se esta crise for administrada de forma estratégica pelo governo americano, ela poderá reforçar, ao invés de enfraquecer, a posição futura dos EUA dentro do sistema mundial. Para entender este segundo paradoxo, entretanto, é necessário ir um pouco além da economia e das finanças, e analisar com cuidado a origem e os desdobramentos das crises e da competição entre os Estados nacionais. Em primeiro lugar, quase todas as grandes crises do sistema mundial foram provocadas, até hoje, pela própria potência hegemônica. Em segundo lugar, estas crises são provocadas quase sempre pela expansão vitoriosa (e não pelo declínio) das potências capazes de atropelar as regras e instituições que eles mesmos criaram num momento anterior, e que depois se transformam num obstáculo no caminho da sua própria expansão. Em terceiro lugar, o sucesso econômico e a expansão do poder da potência-líder é um elemento fundamental para o fortalecimento de todos os demais Estados e economias que se proponham concorrer ou “substituir” a potência hegemônica. Por isto, finalmente, as crises provocadas pela “exuberância expansiva” da potência-líder afetam em geral de forma mais perversa e destrutiva aos “concorrentes” do que ao próprio líder, que costuma se recuperar de forma mais rápida e poderosa do que os demais.

Resumindo: “apesar da violência desta crise financeira, não deverá haver um vácuo nem uma ‘sucessão’ na liderança política e militar do sistema mundial. E, do ponto de vista econômico, o mais provável é que ocorra uma fusão financeira cada maior entre a China e os Estados Unidos”.

José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro “O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações” (Editora Boitempo, 2007).

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