Em 2001, dizia-se que o FSM era um processo, não um evento. Chegamos a 2009 e o processo está ficando perigosamente com cara de evento. Houve quem criticasse a presença de cinco presidentes latinoamericanos, mas eles foram a coisa mais parecida com um “outro mundo possível” que se viu em Belém.
Carta Maior
Por Marco Aurélio Weissheimer*
O Fórum Social Mundial de Belém chegou ao fim. Estamos todos exaustos. E um sentimento de exaustão parece acompanhar também o processo do Fórum. Antes de mais nada, é preciso reconhecer e destacar o esforço e o trabalho do povo do Pará, do governo do Estado e dos organizadores do evento para receber as milhares de pessoas que vieram até Belém. Todo esse esforço, no entanto, foi prejudicado por uma decisão organizativa do FSM: a de optar pela total descentralização das atividades, todas elas autogestionadas. Não havia nenhum debate proposto pelo próprio FSM. A recusa dos organizadores do fórum em assumir um papel de sujeito político (ao menos para propor alguns debates) cobrou seu preço. O resultado foi uma grande desorganização e fragmentação. O excesso de informação acaba virando desinformação. Encontrar o local de uma atividade tornou-se, muitas vezes, uma loteria. Mudanças de locais e de horários foram comuns, prejudicando o acompanhamento do evento.
Apesar disso, não faltou ânimo e vontade de participar dos debates sobre a crise econômica mundial, a situação do povo palestino, dos povos indígenas da Amazônia, a crise ambiental e centenas de outros temas. Essa diversidade, que é uma das marcas do FSM, acabou expondo uma fragilidade do processo como um todo: no momento em que o mundo atravessa uma grave crise econômica, cujas proporções podem ganhar contornos dramáticos ao longo deste ano, a falta de foco e de definição de estratégias articuladas entre as centenas de organizações que participam do Fórum faz com que muita gente deixe Belém com um sentimento de cansaço. O FSM é, acima de tudo, um ponto de encontro e de troca de experiências, dizem os defensores do atual modelo. Mas ele é, na verdade, muito mais do que isso, conforme o próprio slogan do movimento altermundista: “Outro Mundo é Possível”.
Trata-se de um problema que acompanha o fórum desde o início. Mas agora adquire um sentido mais grave. O mundo mudou. Não é mais aquele que marcou o surgimento do FSM em 2001, quando este apresentou-se como um contraponto ao fórum de Davos. E essa mudança hoje tem a cara de uma crise que ameaça jogar no desemprego milhões de pessoas nos próximos meses. E que tem também a cara da guerra, como se viu recentemente em Gaza. Ao final do FSM de Belém, no entanto, decide-se que o próximo encontro ocorrerá apenas daqui a dois anos, em 2011, em algum país da África. Algumas marchas, campanhas e dias de protesto são marcados, repetindo procedimentos já adotados em anos anteriores.
Infelizmente, os debates sobre qual será a próxima sede do fórum ganham tanta (ou mais) importância quanto a agenda estratégica do movimento para o futuro próximo.
Algumas ONGs e intelectuais europeus reclamaram da hegemonia latino-americana e da presença de cinco presidentes em Belém (Lula, Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e Fernando Lugo). Essa presença, aliás, foi o momento mais importante do FSM pois materializou as mudanças políticas no continente e também o caminho para enfrentar a turbulência instalada no cenário global: a ordem é aprofundar a integração. Os movimentos sociais latinoamericanos defendem (com razão) que é na América Latina que aconteceram as mudanças sociais mais significativas nos últimos anos. Todas elas, é importante assinalar, marcadas pela chegada ao poder. E é a partir desse poder político, construído e alimentado por intensa mobilização social, que se torna possível construir políticas públicas universais.
O grupo que controla hoje a organização do FSM é avesso ao poder político, mas, aparentemente, não o é em relação ao poder dentro do FSM. O trio de brasileiros Chico Whitaker, Oded Grajew e Candido Grzibowsky segue freqüentando as entrevistas coletivas do evento, oito anos depois; não havia nenhum representante dos povos indígenas da Amazônia na coletiva de abertura do fórum. Por que a composição dessas mesas não é ela também diversificada? Muita coisa boa aconteceu em Belém, mas diante da gravidade da conjuntura econômica internacional, não parece razoável fazer um balanço do evento, saudando mais uma vez, e sobretudo, a diversidade, o colorido e alegria dos participantes. Tudo isso é ótimo, mas insuficiente diante dos objetivos que animaram o surgimento deste movimento e do que está ocorrendo no mundo hoje.
Ao final da primeira edição do fórum, em 2001, François Houtart alertava para o risco do FSM se tornar uma feira de alternativas. Em 2001, também, dizia-se que o fórum era um processo, não um evento. Pois bem, chegamos a 2009 e o processo está cada vez mais com cara de evento, de feira de alternativas. O tipo de debate criado em torno da definição do local e da data do próximo evento é um forte indício disso. A decisão de realizar um novo encontro somente daqui a dois anos é outro. Dependendo da evolução dos acontecimentos em 2009 e 2010, o FSM corre o sério risco de se tornar irrelevante politicamente. A política, como a natureza, tem aversão ao vácuo. Fosse mesmo um processo, não correria o risco de se reunir apenas daqui a dois anos, independentemente do que ocorra no mundo neste período. Pelo que se viu em Belém, mais do que nunca, diante da crise, chegou a hora dos governos. Seus representantes foram a coisa mais parecida com um “outro mundo possível” que se viu em Belém.
Marco Aurélio Weissheimer é editor-chefe da Carta Maior (correio eletrônico: [email protected])