Contradizendo a doutrina neoliberal que tenta impor ao resto do mundo, baseado na transcendência do mercado, o governo Bush acaba de determinar a maior intervenção do Estado na economia norte-americana desde a Grande Depressão dos anos 20 e 30 do século passado. Anunciou neste domingo 7 de setembro um pacote de US$ 200 bilhões (dólares!) para salvar da bancarrota as duas maiores empresas de crédito imobiliário dos Estados Unidos, a Fannie Mae e a Fredie Mac, que juntas detêm quase a metade (US$ 5,6 bi de um total de US$ 12 bi) desse mercado.
Veja abaixo comentários de alguns analistas econômicas publicados em jornais e blogs desta segunda-feira 8.
FOLHA ONLINE
Estatização nos EUA é o “enterro do neoliberalismo”, diz Maria da Conceição Tavares
EDUARDO CUCOLO, em Brasília
A economista Maria da Conceição Tavares afirmou hoje que a intervenção do governo dos EUA nas duas maiores empresas de hipotecas do país representa o “enterro do neoliberalismo”.
Ontem, o governo norte-americano anunciou uma ajuda de até US$ 200 bilhões para as gigantes hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac. Essa é a maior intervenção do governo dos EUA para evitar uma crise sistêmica na economia.
“É fantástico o país mais liberal do mundo ter de estatizar. É o enterro do neoliberalismo de uma maneira trágica”, afirmou Maria da Conceição.
A economista comparou a operação ao Proer, programa de socorro a instituições financeiras realizado no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.
“Custou uma fortuna”, afirmou, em relação à intervenção dos EUA. “O nosso Proer foi mais baratinho.”
O ex-ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser Pereira afirmou também que a intervenção é “o fim do neoliberalismo”. Segundo ele, a crise deve provocar o ressurgimento de uma nova onda desenvolvimentista, como ocorreu após a crise de 1930, com maior participação do Estado na economia.
“Essa crise marca o fim da onda neoliberal”, afirmou. “É fundamental que haja uma intervenção do Estado.”
Bresser defendeu uma complementação entre a intervenção do mercado financeiro e do Estado na economia. Disse também que a situação seria pior caso não houvesse uma intervenção mais forte do banco central dos EUA na economia do país nesse momento.
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FOLHA DE SÃO PAULO
Mercado de mentiras e seqüestros
VINICIUS TORRES FREIRE
O GOVERNO dos EUA estatizou quase metade do mercado de financiamento imobiliário. Não foi estatização? Hum. O governo americano tem agora 80% das ações preferenciais das duas maiores empresas do ramo, botou para fora seus diretores, nomeou os novos, cancelou os dividendos dos acionistas e, divertidíssimo, as proibiu de fazer lobby no Congresso. Qual o nome disso? Se fosse na Venezuela, seria estatização, certo? Antes de alguns detalhes, porém, algumas conclusões:
1. O governo Bush, “antiestatista”, termina com a maior intervenção do Estado na economia americana desde a Grande Depressão dos anos 30. Mas os lucros ficaram com quem criou a lambança financeira;
2. O governo procura evitar mais quebradeiras. Sim, este é um caso de “risco sistêmico” -o risco de a quebra de instituição financeira importante provocar um dominó de falências que prejudica até quem nada tem a ver com o pato. Mas o “racional” e “eficiente” mercado financeiro oligopolizado (“muito grande para quebrar”) tem o monopólio da desculpa esfarrapada “técnica”. Merece o privilégio sistêmico de ser socorrido quando ameaça todo o resto da economia, mas não paga por isso nos tempos de bonança. O outro nome dessa desculpa, “risco sistêmico”, é seqüestro: se você não pagar o resgate, eu mato todo mundo;
3. O mercadismo critica de boca cheia “instituições capturadas por grupos de interesse”, os quais “politizam a gestão econômica em busca de rendas”. Vivem a dizer que “instituições como bancos centrais e agências” têm de ser “independentes” e “técnicas”, que o Estado não deve subsidiar empresas etc. Divertido é que, para essa gente, os “rent seekers”, os seqüestradores das instituições públicas e devoradores de subsídios e impostos, são sempre os outros -nunca a finança. E agora? Ah, ah, ah. Mostrem-me um liberal.
O governo americano estatizou as duas maiores financiadoras imobiliárias do país a fim de evitar que elas “desmoronassem”, como dizia ontem um ex-diretor do Banco Central americano. Freddie Mac e Fannie Mae, como são apelidadas, têm ou garantem US$ 5,6 trilhões do mercado de dívida imobiliária americano, de US$ 12 trilhões. Se quebrassem, poderia ocorrer um “tsunami financeiro”, como dizia na quinta Bill Gross, diretor do maior gestor de fundos de renda fixa do planeta, o Pimco (US$ 850 bilhões).
Gross pedia ainda que o governo dos EUA comprasse papéis imobiliários podres no mercado. Ontem, além de estatizar Freddie “Fraudy” Mac e Fannie “Phony” Mae, como eram reapelidadas as empresas, o governo anunciou que vai comprar papéis imobiliários. Gross, que tem muitos desses títulos, se dizia ontem “sorridente”.
O que fazem Freddie e Fannie? Grosso modo, concedem, compram e revendem financiamentos imobiliários. Isto é, negociam títulos de investimento que têm como fonte de renda a prestação da casa própria (títulos lastreados em hipotecas, “mortgage backed securities”, ou MBS). Os calotes na prestação da casa própria e a perda de valor de tais títulos estão na origem da crise financeira e bancária que jogou areia nas rodas da economia mundial. Se Freddie e Fannie fossem à breca, a economia iria ao brejo.
O que pode acontecer? Quem entende muito disso dizia ontem que pode tanto haver festa no mercado como mais medo. Bancos, fundos, hedge funds, BCs pelo planeta e outros detentores e/ou inventores da complexa dívida imobiliária americana podem respirar um pouco. Por ora, ao menos, o círculo vicioso de desvalorização pode ser atenuado. O fato de o governo ter ordenado que as empresas financiem mais hipotecas pode ajudar a derrubar os juros da prestação, que não caíram com a crise e os cortes do Fed. Mas muita ente acha que a crise não vai parar enquanto os compradores de casas endividados não receberem ajuda direta. Outros lembram que muito banco tinha ações de Freddie e Fannie, que nesta segunda devem valer menos do que pó-de-traque queimado.
Mas o mais importante de tudo é: o governo americano diz e repete que não vai deixar a peteca cair.
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BLOG DO LUIZ NASSIF
A ajuda às hipotecárias
Há duas posições complicadas em relação aos chamados riscos sistêmicos da economia. O primeiro, do próprio mercado, tendendo a dramatizar qualquer situação, a fim de que os Bancos Centrais minimizem duas perdas. O segundo, de críticos do mercado, quando existe de fato o risco sistêmico. clique aqui.
Não há como comparar os Estados Unidos com Hugo Chávez, pelo fato do primeiro nacionalizar (no sentido de federalizar) duas empresas falidas; e o segundo nacionalizar empresas estrangeiras.
O movimento nos EUA é de puro pragmatismo. Se não houvesse essa ajuda às duas empresas, havia o risco da economia global entrar em parafuso. Tanto assim, que a reação das bolsas internacionais foi de alta imediata, assim que definida a ajuda.
A questão é sobre o preço a ser pago, aquela história de separar controladores e investidores da empresa e de seus mutuários. Há que se preservar o sistema de financiamento e os mutuários; punir os gestores relapsos; cobrar das autoridades a ausência de regulação; e deixar que os investidores percam o que aplicaram, porque faz parte da regra do jogo.
Agora, se permitir que a carteira das duas empresas seja deixada ao relento, vendida na bacia das almas, haverá impacto sobre toda a estrutura de preços de ativos. E aí se tem crise sistêmica.