Carta Maior
Marcelo Justo
Os Estados Unidos e a União Europeia (UE) anunciaram o início de negociações para a formação da maior zona de livre comércio do mundo. Em uma declaração conjunta, o presidente Barack Obama, o do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, e o da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, assinalaram que estão comprometidos a aprofundar uma relação transatlântica “equivalente à metade da produção global e a quase um trilhão de dólares anuais”.
O anúncio foi acompanhado por uma solitária frase do discurso do Estado da União, proferido terça-feira à noite por Obama, quando ele anunciou o início das negociações “porque um comércio livre e justo é a base de milhões de postos de trabalho nos Estados Unidos”. Essa frase foi o ponto de partida que estavam esperando na Europa mandatários como a chanceler alemã Angela Merkel e o primeiro ministro britânico David Cameron que se manifestaram em mais de uma oportunidade a favor de um tratado. “Eliminar as barreiras comerciais que restam para assegurar um amplo acordo não será fácil e exigirá valentia de ambas as partes, mas será amplamente benéfico”, disse Cameron, um dos primeiros políticos europeus a reagir ao anúncio.
Com um 2013 incerto à vista e o permanente desafio da Ásia no horizonte, a possibilidade de um Tratado de Livre Comércio é um dos poucos caminhos que os países desenvolvidos têm para sair no médio prazo da areia movediça deixada pelo estouro da crise financeira de 2008. Nos EUA estava claro quem era o principal competidor. “Os Estados Unidos e a União Europeia estão enfrentando o desafio global colocado pela China. Creio que a melhor maneira de combater esse desafio é nos unirmos”, assinalou Bill Reinsch, presidente do National Foreign Trade Council dos Estados Unidos, um grupo que promove o livre comércio.
Um caminho cheio de pedras
O potencial é indiscutivelmente imenso. Segundo algumas estimativas, os intercâmbios comerciais e de serviços chegam a cerca de US$ 3 bilhões diários. As tarifas alfandegárias são baixas – uma média de 3% -, mas sua eliminação em um intercâmbio tão massivo suporia um gigantesco estímulo e uma significativa poupança que poderia ser dirigida para o consumo doméstico, um setor que precisa de estímulo dos dois lados do Atlântico apesar do sobreendividamento ocorrido na década passada do dinheiro fácil.
Não resta dúvida que ambas as partes precisam disso. Enquanto Ásia, América Latina e África tem uma respeitável perspectiva de crescimento para este ano, a União Europeia, com o marasmo da zona do euro, o gigantesco endividamento e os programas de austeridade, está lutando para evitar a recessão, enquanto que os Estados Unidos sofreram uma contração no último trimestre do ano passado e necessitam um crescimento menos esquelético que o atual para recuperar o terreno perdido.
O reiterado fracasso da Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), que começou em 2001 depois dos atentados contra as torres gêmeas e teve uma tentativa de retomada em 2011, é parte do plano de fundo desta busca de acordos bilaterais que se multiplicaram nos últimos anos. Mas os obstáculos para uma zona de livre comércio EUA-UE também são gigantescos. Se o anúncio de Obama foi música da Merkel e Cameron, o som foi um pouco mais dissonante para o presidente da França, François Hollande, sempre preocupado com qualquer ameaça aos subsídios agrícolas que equivalem a quase 40% do orçamento europeu.
O tema agrícola – que atravancou a negociação de um tratado de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia – não é o único obstáculo. Um verdadeiro pesadelo é a harmonização regulatória das indústrias automotriz, farmacêutica, alimentar e de brinquedos em ambos os lados do Atlântico. Esta harmonização é tão complicada que não está inteiramente resolvida no interior dos 27 países que compõem a UE. Outro caso que promete longas batalhas diz respeito aos alimentos geneticamente modificados que enfrentam fortes obstáculos na Europa.
O fantasma do Mercosul-UE
A brevidade do anúncio de Obama – uma única frase com um infinito potencial – pode se dever a que não havia muito mais o que dizer ou a que, segundo a imprensa estadunidense, o grupo da UE e dos EUA que está trabalhando sobre o tema só pode dar a luz verde na própria terça-feira, poucas horas antes do discurso do presidente. Esse grupo discutiu durante mais de um ano para ver se as negociações serão para chegar a um acordo limitado a tarifas alfandegárias ou a um acordo mais amplo, cobrindo meio ambiente, agricultura, indústria farmacêutica e automobilística.
Os pessimistas assinalam que uma negociação de fundo levará anos. O modelo Mercosul-UE é um exemplo das dificuldades. No final de 1995, ambos firmaram um Acordo Marco Interregional (AMI), passagem prévia a um Tratado de Associação, baseado no livre comércio, na cooperação e no diálogo político. Dezoito anos depois está claro que o livre comércio foi a tumba do assunto, apesar do que, na última sessão plenária da Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, em dezembro, a presidenta argentina, Cristina Fernández, apoiou uma aceleração das negociações com a União Europeia, desde que se “fale de igual para igual”.
Segundo o professor de Relações Internacionais da Universidade de Nottingham, Andreas Bieler, a crise econômica mundial, que pode complicar a negociação EUA-UE, poderia também acelerá-la, sobretudo quando o fantasma asiático está batendo à porta dos países desenvolvidos. “Este tipo de competição com a China pode empurrar para um acordo, apesar de que em muitas áreas ainda não há uma competição direta com a China que tem muito mais comércio em exportações baratas, enquanto os Estados Unidos e a União Europeia estão mais centrados em produtos mais sofisticados”, disse Bieler à Carta Maior.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer