Que do Oiapoque ao Chuí se escute a mesma música, o mesmo discurso; e que se tenha do mundo que aí está, que ele é incontestável, por homogêneo, parece a única coisa a ser realmente contestada, ou antes, a própria razão de ser do Fórum: bendita Babel.
Carta Maior
Por Enio Squeff*
Santo Agostinho que foi uma das grandes inteligências da Igreja dos primórdios do cristianismo, gostava de repetir um paradoxo. Chamava de “pecado bendito” a traição de Judas. Raciocinava, com razão, que se Cristo não tivesse sido sacrificado, a Igreja não existiria, os homens não seriam redimidos, essas coisas. No Fórum Social Mundial de Belém parece mais ou menos consensual que a diversidade existe e “a gente gosta”. O paradoxo, no caso, que parece, igualmente, ter algo de agostiniano, é que o pecado também bíblico da Torre de Babel, adquire aqui o estatuto de “bendito”. Ninguém em Belém abdica da idéia de que a homogeneidade imposta pelo capitalismo (quem sabe, já não mais tão triunfante assim), tem no contraponto da diversidade a única resposta possível. É uma contradição, mas parece não ter como ser diferente.
À primeira vista, qualquer visitante que acompanhe o Fórum, achará, com a pertinência confirmada pelas muitas confusões, que a diversidade e o caos podem, por sua vez, ser sinônimos. Em face das salas fechadas para as conferências – que então se farão na rua – das informações desencontradas e contraditórias ou mesmo de uma multidão multiforme, aparentemente errática, uma coisa, enfim, explicaria a outra. Karl Marx concedia que os problemas criados pelo homem, são sempre solucionáveis pelos próprios. Parece ser esse, em parte, o mote dos ecologistas não apenas do Fórum: na medida em que os estragos das ações ditas “entrópicas” são as mais deletérias para a persistência da vida, fica para os homens a paradoxal tarefa também de solucioná-las.
A outra contradição cultivada- ou as conseqüências da bendita Babel, digamos – é a insistência sobre o paradoxo da diferença. A máxima atribuída a Voltaire sobre a concessão a outrem o seu direito irrestrito de divergir; ou o conceito de que a democracia supõe a prerrogativa das minorias de serem, no mínimo, respeitadas, parece terem no Fórum uma espécie de motivo condutor. Poucos sabem, por exemplo, que um povo do Saara – os saharauis – sofrem, já há anos, as ações reconhecidamente genocidas do Marrocos. São mais de um milhão de nômades que têm um muro a separá-los em seu próprio território. Quase ninguém fala sobre isso, embora as ações do Marrocos tenham sofrido seguidas condenações da ONU.
Quaisquer relações com outros muros construídos algures e que contradizem as perspectivas otimistas de que o de Berlim seria o último – não são, enfim, conclusões fortuitas. No entanto, os saharauis e seus defensores – alguns espanhóis – estão no Fórum. Mais que isso: insistem em que, ao convidarem artistas plásticos do mundo(?) para trabalharem sobre o tal muro, talvez lhes faculte não serem chacinados ao clamarem por sua independência.
Há nisso tudo, ao que parece, o cultivo da contradição como motivo condutor de um novo mundo. A diversidade – maldição da Babel – parece advertir que os consensos da cultura global, não podem se dar em torno do jeans ou da Coca Cola. Para três intelectuais presentes ao Fórum de Belém e enfiados num carro que tentaram, inutilmente, no dial do rádio, uma alternativa às canções berradas em inglês, e cuja mesmice só fazem por repisar o insuportável do tal mundo consensual da cultura como mercadoria, ficou a constatação iniludível: o melhor mundo possível, ou tem a cara da diferença, ou será mais uma mentira passageira. Que do Oiapoque ao Chuí se escute a mesma música, o mesmo discurso; e que se tenha do mundo que aí está, que ele é incontestável, por homogêneo(como sempre se requer, aliás, de um produto a ser vendido) parece a única coisa a ser realmente contestada, ou antes, a própria razão de ser do Fórum: bendita Babel.
*Enio Squeff é artista plástico e jornalista.