Em 18 de setembro, um grupo de 24 alunos recebeu o certificado de conclusão de curso superior em Ciências do Trabalho. Era a formatura da primeira turma organizada pelo Dieese, iniciada em 2012, completando um percurso histórico de 60 anos. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos foi criado em dezembro de 1955 com a ideia, entre outras, de ser um centro de estudos e formação, aproximando-se da academia, mas tendo como base o mundo do trabalho. Completadas seis décadas, o instituto consolidou-se no cenário econômico como referência de análise. Para isso, teve de superar obstáculos políticos e financeiros. A convivência entre técnicos e dirigentes sindicais teve momentos ásperos, mas o Dieese conseguiu equilibrar-se entre o rigor científico e o atendimento a demandas, cada vez mais complexas, dos sindicatos.
Paraninfa da turma, a socióloga Heloísa Helena de Souza Martins, diretora técnica do Dieese de 1966 a 1968, falou aos formandos sobre a conjuntura em que o instituto foi criado: “Explicar os dilemas de uma sociedade envolvida com o projeto desenvolvimentista com ênfase no processo de industrialização era o desafio dos intelectuais e pesquisadores comprometidos com a ideia da superação das desigualdades e injustiças sociais”. E destacou a figura do primeiro diretor, José Albertino Rodrigues, que alimentava uma utopia socialista, mas também defendia a necessidade de uma “compreensão científica da realidade brasileira”.
Durante os anos de hiperinflação, e índices manipulados pelo governo, o Dieese fez a diferença
“Ouça o que eles (sindicalistas) falam, observe o comportamento”, foram recomendações que a socióloga Heloísa, indicada a Albertino pelo professor Azis Simão, recebeu ao chegar ao Dieese, “o primeiro que levou a discussão do sindicalismo para a universidade”. E lembra de uma conversa com Azis: se a universitária queria estudar o movimento sindical, deveria aproveitar a oportunidade para conhecê-lo “por dentro”, conviver com as questões do dia a dia. “Pude compreender, então, que antes de se constituírem como problemas teóricos, eram problemas sociais”, disse a paraninfa aos formandos.
Ela chegou para ajudar a calcular o Índice do Custo de Vida (ICV) na cidade de São Paulo. Eram duas pessoas para fazer coleta de preços em feiras livres e centros comerciais. Professora doutora aposentada e colaboradora na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Heloísa observa que desde o começo Albertino enfatizava a importância da objetividade e do critério científico. O instituto deveria produzir conhecimento para sustentar a prática.
Desmascarar
A inflação também está na gênese da criação do Dieese. Era tempo de grandes greves e negociações, e os sindicalistas desconfiavam do índice oficial, na época calculado pela prefeitura paulistana. Fundador do instituto, o dirigente bancário Salvador Losacco contou – em depoimento de 1987 ao pesquisador Miguel Chaia – que a ideia era formar um organismo que estudasse e calculasse o custo de vida, inclusive para “desmascarar” o índice oficial.
As primeiras conversas nesse sentido surgiram no Pacto de Unidade Intersindical (PUI), formado nos anos 1950. “O Dieese é fruto desse pacto”, diz o sociólogo Fausto Augusto Júnior, autor de uma dissertação de mestrado, em 2010, para a Faculdade de Educação da USP, justamente sobre o ICV como “produção de conhecimento” entre 1955 e 1964. Primeiro, houve uma apropriação do conhecimento produzido pela ciência histórica. E a aproximação entre intelectuais e sindicalistas avançou à medida que o ICV adquiriu solidez.
“A ideia de ‘perda salarial’ e ‘reajuste necessário’ contribuiu para se revelar o constante arrocho salarial sofrido pelos trabalhadores, transformando assim o ICV/Dieese em instrumento de denúncia e bandeira de luta política contra a carestia”, escreve Fausto na dissertação. Ao analisar os boletins daquele período de dez anos (1955/1964), o técnico – que hoje atua na subseção do Dieese no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC – nota as tentativas de “fazer a migração de um texto acadêmico para o sindical”.
Assim, o instituto foi conquistando campos de negociação, observa Fausto. E atuando em diversas frentes. Enquanto isso, muitos dirigentes sindicais tornaram-se gestores públicos. “Isso demanda mais conhecimento.”
A economista Lenina Pomeranz, professora na Faculdade de Economia e Administração da USP, lembra dos primeiros tempos, em uma sala “grande, mas escura” e com uma máquina Olivetti chamada de “jacaré, muito barulhenta e grandona”. Além do ICV, o Dieese começou a organizar um fichário de empresas, analisando os balanços que saíam nos jornais, o que representava um subsídio a mais na mesa de negociação. Apesar de alguma incompreensão por parte dos sindicalistas em relação à importância da estatística, Lenina avalia que a relação com os dirigentes era de intercâmbio e confiança. “A gente tinha muito apoio do núcleo duro.” Diretora técnica a partir de 1962, no lugar de Albertino, ela saiu em setembro do ano seguinte, para fazer um curso na Polônia. Só voltaria em 1967.
Heloísa Martins recorda momentos mais tensos, como em uma reunião sobre política salarial em que um dirigente lhe disse: “Não vim aqui para ter aulinha de estatística. Quero discutir o nosso reajuste”. Ou quando convocou uma reunião para um domingo de manhã, incluindo trabalhadores da base, em São Paulo. “Técnico não fala com trabalhador, fala com dirigente. Nós falamos com trabalhador”, ouviu. Também não era incomum reclamarem do índice de inflação apurado, argumentando que determinado produto estava aumentando muito de preço.
Científico
A ata de fundação do Dieese foi assinada às 20h30 de 22 de dezembro de 1955 por 19 entidades, no sétimo andar do Edifício Martinelli, centro de São Paulo, prédio onde ficava a sede do Sindicato dos Bancários – e para onde a entidade voltou em 1993. Teve dezenas de presidentes, mas apenas seis diretores técnicos. Entre eles, ninguém permaneceu mais tempo do que o economista Walter Barelli, cujo nome se confunde com a instituição. “Tem uma coisa que ninguém tira do Dieese, que é a característica técnico-científica”, diz Barelli, que permaneceu 22 anos à frente da direção técnica, de 1968 a 1990. Formado em Economia na USP em 1964, ele não teve formatura, porque a cerimônia ocorreria justamente no dia do golpe e havia um carro de combate diante da faculdade – ele seria o orador.
Essa conduta técnica às vezes provocava queixas. Convidado por Heloísa para trabalhar no instituto, Barelli lembra que muitas vezes o índice de inflação calculado pelo Dieese era inferior ao oficial. “E era dureza falar para o dirigente sindical. Você tem de ser fiel à metodologia.” No final dos anos 1950, conta, o ICV passou a ter três faixas, conforme a renda familiar, padrão mantido até hoje.
Diretor técnico de 1990 a 2003, o economista Sérgio Mendonça também testemunhou algumas crises internas por causa do resultado das análises feitas pelo instituto. Como no Plano Cruzado, em 1986, quando o Dieese apontou aspectos negativos e positivos e recebeu críticas dos sindicalistas, principalmente da CUT, mas também da então CGT. Dizer que o Plano Real, lançado em 1994, seria duradouro “incomodou muita gente”, lembra Sérgio.
“Havia um movimento mundial de estabilização das economias. Não era muita novidade imaginar que o Brasil também se estabilizaria, como aconteceu.” Também houve algum atrito quando algumas entidades resolveram criar seus próprios departamentos econômicos. “Acho que hoje essa tensão está superada”, avalia o ex-diretor, atualmente secretário de Relações de Trabalho do Ministério do Planejamento.
Diversidade
A recomendação para os técnicos sempre foi a de não externar posições políticas. Já a direção sindical procurou blindar o instituto de posições partidárias. Dirigente pré-1964, Luiz Tenório de Lima, o Tenorinho, integrante do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), atestou essa preocupação em depoimento ao próprio Dieese, dez anos atrás. “Nunca aceitamos – inclusive eu não aceitei, mesmo como dirigente do Partido Comunista, reagi e não permiti, como outros companheiros não permitiram – que um partido comunista instrumentalizasse o Dieese, fizesse dele, vamos dizer assim, um trampolim político para certas ocasiões. Nós nunca fizemos isso para garantir a unidade daqueles que vinham com o Dieese.”
Barelli também se recorda de uma recomendação feita por Albertino: “Não deixe os dirigentes sindicais perceberem qual é a sua tendência política, senão eles perdem o respeito”.
Autor do livro Intelectuais e Sindicalistas – A Experiência do Dieese, Miguel Chaia afirma na obra que o instituto nasceu de uma consciência operária: só os trabalhadores poderiam promover o conhecimento de sua situação. “Escudando-se no binômio ciência-trabalho, cria sua própria natureza e evita confrontos ideológicos e partidários, quando referentes à diversidade da classe trabalhadora”, escreveu. O pesquisador lembra ainda que a conquista da legitimidade tornou o Dieese referência não apenas para o mundo sindical, mas para vários setores da sociedade.
Com turbulências, o departamento conseguiu estabelecer uma relação de equilíbrio entre as diversas forças políticas que o sustentam. O atual diretor técnico, Clemente Ganz Lúcio, no cargo desde 2003, diz que há clareza sobre o papel do instituto: “O propósito da instituição é ser uma assessoria técnica. Nossa posição tem uma influência, mas não é deliberativa. Há um esforço de ser sempre muito transparente, mostrar a metodologia”. Além disso, existe um acordo político para que as disputas sindicais não se reflitam no Dieese.
Um conselho formado por oito centrais sindicais, com três representantes de cada, ajusta a dar essa sustentação e tornar o departamento uma espécie de território neutro. “Acho que isso mostrou a importância do Dieese e o papel que desempenha no movimento sindical. Facilitou o diálogo com as centrais”, afirma a presidenta do instituto, Zenaide Honório, diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
A presidência é ocupada em sistema de rodízio: a cada mandato – o atual vai até 31 de janeiro de 2017 –, revezam-se dirigentes da CUT e da Força Sindical. Em termos históricos, pode-se dizer que de alguma maneira essa alternância ocorreu desde o princípio: Salvador Losacco (Bancários de São Paulo) foi o primeiro presidente e Remo Forli (Metalúrgicos de São Paulo), o sucessor.
Sobrevivência
Se a questão política foi relativamente resolvida, a financeira continua sendo um problema. Barelli se refere a um “padrão Dieese” de resistência a crises. “O Dieese sempre viveu com dificuldades financeiras”, diz Sérgio Mendonça, que nos anos 1990 passou por um período doloroso, com corte de áreas e demissões. “Estou aqui há mais de 30 anos. Não tem tempo fácil”, acrescenta Clemente. “O Dieese tem um equilíbrio de longo prazo, operado por um desequilíbrio recorrente permanente. O nosso grande problema é o padrão de financiamento de curto e médio prazo.”
As receitas do Dieese vêm das entidades filiadas e de convênios com órgãos públicos, como o que mantém a Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), um dos vários estudos permanentes do instituto, junto com o que apura o custo da cesta básica, o poder real de compra do salário mínimo e o comportamento das negociações salariais. A relação varia – este ano, 60% da receita deve vir do movimento sindical. O momento econômico difícil causa preocupação. “Vamos trabalhar para atravessar essa crise sem tormentas”, diz Zenaide.
Durante a ditadura, houve uma tentativa do governo de sufocar financeiramente o Dieese. Segundo Barelli, o ministro Julio Barata (à frente da Pasta do Trabalho no pós AI-5) reuniu os delegados regionais e determinou que os sindicatos não podiam contribuir para o instituto – na época, a contabilidade das entidades tinha de ser aprovada pelo Ministério do Trabalho. Os sindicalistas conseguiram driblar a medida. Chaia anota, em seu livro, que nos anos 1970 um sindicalista ligado à Arena (partido da ditadura), Orlando Malvezi, foi eleito deliberadamente para a presidência “como tática para evitar as crescentes pressões contra a instituição e os ataques contra os técnicos”.
Até hoje, o instituto não tem sede própria. A atual, no centro de São Paulo, pertence ao poder público. A estrutura compreende 64 subseções – escritórios atuantes em entidades sindicais – em nove estados, 18 escritórios regionais e 342 funcionários, sendo aproximadamente 200 técnicos, dos quais 150 economistas.
“A grande escola do Dieese é trabalhar técnica e coletivamente”, define Sérgio Mendonça. “É uma escola de formação. A gente aprendeu a trabalhar para a classe trabalhadora.” Com o tempo, a pauta também se ampliou, observa o economista. “Nos anos 50, 60, quando o inimigo da classe trabalhadora era a inflação, o Dieese atuava quase monotematicamente. Hoje é uma agenda voltada para as políticas públicas. É uma sociedade bem mais complexa.”
As demandas contemporâneas levaram à criação da escola do Dieese, um sonho antigo. “É um campo de conhecimento não clássico, mas interdisciplinar, trazendo o escopo de produção do Dieese”, diz Clemente. Com isso, também se combate uma visão de que o trabalho é um simples recurso, um insumo, desconsiderando o fator humano. “O conflito básico (as relações capital-trabalho) não é mais objeto de atenção.” Para ele, isso se reflete na academia tradicional, que já teria dedicado mais espaço ao estudo desse universo.
Consciência a partir da realidade
Um episódio que deu visibilidade – e credibilidade – ao Dieese aconteceu no segundo semestre de 1977. Na edição de 31 de julho, o jornal Folha de S.Paulo publicou um relatório do Banco Mundial, revelando que o índice oficial de inflação no Brasil em 1973 (perto de 15%) não era válido – os preços no atacado teriam variado, na verdade, 22,5%. O indicador que mais se aproximava da realidade era o do Dieese (26,7%). Imediatamente suspeitou-se de manipulação. O ministro da Fazenda na época era Delfim Netto.
No dia seguinte ao da publicação da reportagem, uma segunda-feira, Barelli conta que recebeu dois telefonemas: dos presidentes do Sindicato dos Bancários de São Paulo (Francisco Teixeira) e do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (atual ABC), Luiz Inácio da Silva, o Lula. Queriam que o Dieese calculasse as perdas causadas pelo fato de o índice oficial ter subestimado a inflação. “Choveu pedido do país inteiro. Foi importante para criar um fator mobilizador para o movimento sindical.” Aquele fato impulsionaria as campanhas salariais do ano seguinte.
Dias depois de divulgado o relatório, o ministro Mário Henrique Simonsen foi à Câmara dos Deputados falar do assunto. Em setembro, ele e seu colega do Planejamento, Reis Velloso, se reuniram com sindicalistas. O empresário Herbert Levy, filiado à Arena e na ocasião dono do jornal Gazeta Mercantil, chegou a comentar que “o tal do Dieese” é que estava certo. Para Barelli, o instituto ajudou a criar “uma consciência de perdas, de espoliação, usando os dados da realidade”.
Em 1990, o Dieese viveu outro confronto, já no governo Fernando Collor. O então porta-voz da Presidência da República, Cláudio Humberto, questionou cálculos do Dieese sobre a inflação, tentando desqualificar o instituto ao lembrar que Barelli, então licenciado, trabalhava na assessoria econômica do candidato Lula. A ilação provocou uma reação indignada do economista: “O movimento sindical tem a sabedoria de nunca pedir para que o Dieese manipule. A classe operária é muito mais digna do que os governantes”.