Carta Capital
Gerson Freitas Jr
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) quer ter papel relevante nas discussões sobre uma possível reforma tributária. O debate, sempre presente na pauta em inícios de mandato, deve ganhar força nos próximos meses. Ainda no primeiro semestre, o governo pretende encaminhar ao Congresso um conjunto de medidas com o objetivo de simplificar as cobranças e estimular o investimento. Para os sindicalistas, é a oportunidade de levantar bandeira.
A redação da proposta governista está a cargo de Nelson Barbosa, secretário-executivo do Ministério da Fazenda. Embora as opções ainda estejam na mesa, sabe-se que serão medidas pontuais. Dilma Rousseff acredita que a aprovação de uma ampla reforma no sistema estabelecido pela Constituição de 1988 esbarre em inúmeros conflitos. Seus dois antecessores tentaram e fracassaram. “Trata-se de um embate entre ricos e pobres, Estado e mercado, Estado e Estado, e capital e trabalho”, afirma Barbosa.
A aposta é que alguns tópicos podem avançar com mais facilidade do que outros, razão pela qual os projetos serão apresentados separadamente. Até o momento, são quatro as propostas em discussão. O governo quer rever a tributação sobre as micro e pequenas empresas, unificar a legislação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), reduzir as cobranças que incidem sobre os investimentos e as exportações e, finalmente, desonerar a folha de pagamento.
Artur Henrique, presidente da CUT, afirma que a estratégia do governo é equivocada. Segundo o sindicalista, as mudanças em estudo são “cosméticas” e não enfrentam o problema central. “A estrutura tributária atual é altamente regressiva e, por isso, injusta.” No Brasil, os impostos incidem principalmente sobre as mercadorias. Isso significa que as famílias mais pobres, que destinam a maior parte de sua renda ao consumo, pagam proporcionalmente mais tributos do que os ricos. Por isso se diz que a carga regride conforme a renda aumenta.
Segundo dados do IBGE, de 2003, um brasileiro que ganhe até dois salários mínimos gasta quase metade de seu rendimento com o pagamento de tributos e contribuições embutidos nos preços. Essa proporção é de apenas um quarto para quem ganha mais de 30 salários. Em países como Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Coreia do Sul, os impostos incidem principalmente sobre a renda. Desse modo, quem ganha mais, paga progressivamente mais.
Essa peculiaridade faz crescer o abismo entre os ricos e pobres. Embora tenha a nona maior economia, o Brasil possui a décima pior distribuição de renda em todo o mundo, segundo dados do Banco Mundial e das Nações Unidas. “É preciso ampliar essa discussão. Ela diz respeito ao modelo de desenvolvimento que queremos para o Brasil, ao papel do Estado. Trata-se de garantir que os mais ricos ajudem a levantar os fundos para combater a pobreza, ampliar os serviços sociais e melhorar o serviço público”, afirma o sindicalista.
Na última semana, a CUT reuniu suas- lideranças em Brasília para discutir o tema. Além de formalizar uma proposta a ser levada ao governo, os sindicalistas pretendiam afinar o discurso sobre um tema que deverá ganhar espaço na imprensa. Em linhas gerais, a entidade defende um projeto que aumente a cobrança de impostos sobre a renda e o patrimônio, de modo que as famílias mais abastadas paguem mais impostos – o que se chama de “progressividade”. Uma das ideias é criar um tributo sobre as grandes fortunas, que incidiria sobre o patrimônio líquido das pessoas físicas e jurídicas de valor superior a 2,4 milhões de reais. Nas contas- da -entidade, a medida garantiria uma arrecadação superior a 23 bilhões de reais, valor que financiaria uma política de valorização do salário mínimo. Outra proposta é a de tributar os lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas, isentos desde 1996.
As chances de propostas como estas passarem pelo Congresso são quase nulas. Nelson Barbosa, presente ao encontro da CUT, lembrou que mesmo projetos neutros do ponto de vista da distribuição da renda, como a encaminhada por Lula em seu primeiro ano de governo, enfrentaram resistências enormes. Razão pela qual defendeu a abordagem “gradualista” do governo Dilma. “As grandes reformas no Brasil aconteceram sempre em períodos de exceção. Em uma democracia, elas são construídas.” Mesmo assim, o secretário disse que o governo estuda medidas para aumentar a progressividade da estrutura tributária, embora não tenha citado nenhuma.
Os sindicalistas criticam, em particular, o projeto de desoneração da folha de pagamento. Embora concordem com a ideia de reduzir os encargos que incidem sobre o emprego, dizem que a medida coloca em risco a previdência. Atualmente, os empresários contribuem com um valor equivalente a 20% do salário do funcionário para a seguridade social. O governo pretende reduzir essa participação em 2 pontos porcen-tuais ao ano, até o limite de 14%. A medida teria o objetivo de amenizar o custo das contratações, antiga reivindicação dos empresários, sob o argumento de estimular a abertura de novas vagas.
Henrique calcula que, se aprovado, o projeto vai subtrair 6 bilhões de reais das receitas anuais da previdência. “Se não houver uma fonte de recursos para compensar esse rombo, a previdência ficará comprometida em alguns anos. E não é justo conceder esse benefício aos empresários e sobrecarregar toda a sociedade.” O presidente da CUT afirma que a contribuição deveria incidir sobre o faturamento das empresas. Desse modo, setores intensivos em capital, mas que contratam poucos trabalhadores, como o de óleo e gás, pagariam proporcionalmente mais do que aqueles que mais empregam, como o calçadista. O sindicalista critica ainda o fato de o governo conceder um benefício às companhias sem qualquer garantia de geração de empregos. “O argumento de que a queda dos custos se converte automaticamente em novas vagas já se mostrou falacioso.”
O representante da Fazenda garantiu que o governo não vai encaminhar qualquer projeto de desoneração da folha que não contemple uma fonte alternativa de recursos para a Previdência Social. E concordou com os sindicalistas ao afirmar que “desoneração não gera emprego”. “O que gera emprego é demanda”, ponderou, “só que grande parte da demanda está migrando para produtos de países onde os salários dos trabalhadores são mais baixos.” Barbosa observou que o Brasil está se especializando na produção e exportação de matérias-primas, o que tende a sobrevalorizar o real e expor, cada vez mais, a indústria de transformação à concorrência internacional. “Precisamos aumentar a competitividade da indústria, pois não podemos prescindir desses empregos. Com a desoneração, acreditamos ser possível ganhar mais espaço para a indústria nacional no mercado interno.”
Embora tenham poucas chances de emplacar alguma proposta – e algumas delas sejam questionáveis -, os sindicatos têm um papel importante nas discussões sobre a reforma tributária. Um debate que, nos últimos anos, limitou-se a iniciativas rasas como a do “impostômetro”, o medidor eletrônico de arrecadação mantido em São Paulo pela Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT). O argumento de que a carga tributária brasileira é elevada pode até ser válido, mas nem de longe encerra o debate.
A carga tributária brasileira é de aproximadamente 36% do Produto Interno Bruto (PIB), a soma de todas as mercadorias e serviços produzidos pela economia. É um patamar próximo ao de países desenvolvidos, como Canadá (33%), Reino Unido (35,6%) e Alemanha (39,2%), superior ao dos Estados Unidos (28,4%) e do Japão (28,1%). No entanto, uma parte significativa dos recursos destinados aos cofres públicos volta para a sociedade na forma de transferências de renda, uma conta que inclui desde o pagamento de pensões e aposentadorias aos subsídios ao setor privado. Em 2008, tais transferências representaram 15% do PIB, segundo o IBGE.
De acordo com o Ipea, nem mesmo a Carga Tributária Líquida, que exclui as transferências de renda, representa uma boa medida dos recursos que os governos no Brasil efetivamente extraem da sociedade para a manutenção dos serviços públicos e da infraestrutura. É preciso ainda excluir o que se gasta com o pagamento dos juros da dívida pública. Em 2008, último ano antes da crise, as administrações públicas destinaram 5,6% do PIB para esse fim. Excluindo-se os juros e as transferências de renda, a carga tributária brasileira é de 13,1%, patamar bastante inferior ao de países desenvolvidos como Canadá (22,5%), Coreia (24,7%) e Reino Unido (20,9%) e mesmo de países como Hungria (23,5%) e Polônia (17,7%).
De todo modo, é indesejável que a discussão sobre o sistema tributário aconteça exclusivamente na base do “quanto menor, melhor”. “Os trabalhadores têm debatido muito pouco o financiamento das políticas públicas. Não há direitos sociais sem financiamento adequado. O tributo é o preço da cidadania”, afirmou Evilásio Salvador, professor da Universidade de Brasília, durante o encontro com a CUT. Segundo o acadêmico, a sociedade precisa discutir que modelo de Estado deseja. “É um Estado que assegura direitos, que tem políticas universais de saúde e educação?”
Artur Henrique reconhece que os sindicatos omitiram-se numa discussão em que as associações patronais transitam com muito mais desenvoltura. A dificuldade, afirma, é articular um discurso capaz de fazer frente ao apelo inerente às propostas que pedem menos impostos. O sindicalista lembra o episódio que culminou no fim da CPMF, que se destinava ao financiamento da saúde. “Essa foi uma batalha que perdemos. Não soubemos nos comunicar com a sociedade”. Um cenário que ele espera reverter.