Clóvis Rossi
Folha de São Paulo
O professor Delfim Netto saudou ontem, em sua coluna nesta Folha, o que chamou de “estatização” do Banco Central, em alusão à decisão de baixar os juros. Um sinal, torce Delfim, de “menor influência do setor financeiro privado”.
Tomara. Pena que falte o principal, “estatizar” também os governos, mais e mais dependentes de ordens não escritas emanadas do setor financeiro.
No Brasil, essa “privatização” do público aparece na manutenção de um elevado superavit primário (receitas menos despesas do governo, fora juros da dívida).
Só no primeiro trimestre deste ano, as despesas com juros foram de R$ 119 bilhões, 30% a mais que em 2010. Montante que equivale a impressionantes 6,12% de tudo o que a economia produz em bens e serviços, o tal de PIB (Produto Interno Bruto).
É a rubrica que mais consome recursos públicos, como se o Brasil estivesse com todos os problemas resolvidos e pudesse dedicar a maior fatia de seu carinho aos credores, uma ínfima minoria.
Mas é na Europa que aparece com mais nitidez a privatização do Estado. Açoitados pelos mercados, um governo após o outro adota medidas de austeridade que sufocam a recuperação ainda débil da economia. O ponto culminante desse assalto aos Estados se dá pela tentativa de inscrever na Constituição um limite para o deficit público.
Até concordo que os Estados, como as pessoas físicas, devem viver de acordo com as suas posses. Mas sempre aparecem circunstâncias excepcionais que tornam imprescindível aumentar o gasto público e, com isso, gerar deficit/dívida.
Se quando eclodiu a crise financeira já estivesse em vigor esse tipo de veto constitucional, não teria sido possível adotar os colossais pacotes de estímulo que foram decisivos para evitar a depressão.
A privatização do espaço público se dá até na narrativa da crise: a obsessão com o ajuste fiscal é tanta que fica a impressão de que foram os gastos irresponsáveis dos governos que a provocaram, quando ocorreu o contrário.
O comportamento irresponsável do sistema financeiro é que gerou a crise e, por extensão, a necessidade de pacotes de estímulo, que levaram a um endividamento/deficit colossal.
Agora, os mercados que comeram na mão dos governos exigem austeridade, que é de fato necessária, desde que se levem em conta outras necessidades imperiosas, como crescer, reduzir o desemprego etc.
Vale comentário da jornalista e escritora espanhola Irene Lozano para “El País”, no qual lamenta “a hegemonia atual desses entes fantasmagóricos chamados mercados, que não se apresentam às eleições nem prestam contas aos cidadãos nem explicam seus programas, mas ostentam a faculdade de impor a visão de mundo mais benéfica para eles”.
Lozano recupera frase de Adam Smith, o grande profeta do capitalismo e do livre-mercado, capaz no entanto de enxergar que “a rapacidade mesquinha e o espírito de monopólio dos mercadores não são nem devem ser os governantes da humanidade”.
Pois é, velho Adam, dois séculos depois, a rapacidade dos mercadores governa o mundo, sim, senhor.