Bancos não explicam juros de até 490% ao ano no cartão de crédito no Brasil

Fatura de R$ 10 pode virar dívida de R$ 45 mil em apenas cinco anos

O Brasil sempre foi pródigo em criar jabuticabas financeiras, aquelas situações econômicas que beiram o surrealismo e ninguém consegue entender muito bem porque só acontecem por aqui. Dono de um vasto repertório, como o overnight nos tempos de inflação galopante ou as atuais Letras Financeiras do Tesouro, o Brasil está agora novamente diante de um aparente paradoxo econômico.

Enquanto a taxa básica de juros, a Selic, que serve de referência para todo o mercado, cai para os menores níveis da história brasileira, as taxas cobradas pelos cartões de crédito não só se mantêm em três dígitos ao ano como, em alguns casos, chegam, até, a subir. Apesar disso, é praticamente impossível encontrar no mercado brasileiro algum emissor de cartões que explique a razão desse descompasso ou mesmo quais são os componentes utilizados para determinar uma taxa de juros tão alta.

Os bancos brasileiros, os principais operadores dos cartões, recusam-se a explicar quais os critérios que utilizam para determinar que uma fatura em atraso seja reajustada a uma taxa de mais de 300% ao ano. Já a Associação Brasileira das Empresas de Cartão de Crédito e Serviços, a Abecs, afirma, oficialmente, que cabe aos bancos determinar que taxas irão cobrar de seus clientes. Em meio a esse labirinto de desinformação fica o consumidor brasileiro que, hoje, se deixar de pagar uma fatura de R$ 10 verá sua dívida chegar a incríveis R$ 45 mil em apenas cinco anos.

Nas últimas semanas a reportagem do iG procurou os principais bancos brasileiros para entender como a taxa de juros dos cartões de crédito é composta. Por meio de suas assessorias de imprensa, Bradesco, Banco do Brasil e Santander disseram que, nos últimos dias, não tinham executivo ou técnico que pudesse explicar quais critérios são usados para formar a taxa de juros. HSBC e a Caixa Econômica Federal enviaram, por meio de notas, explicações evasivas.

Já o Itaú e o Banco do Brasil afirmaram que não se consideram as melhores fontes de informação para explicar a composição de suas taxas de juros. E recomendaram que a reportagem do iG procurasse a Abecs. Abecs, por suas vez, devolveu a bola aos bancos. A entidade respondeu apenas que “as taxas de juros dos cartões são definidas a partir de diversos critérios específicos e individuais referentes à gestão comercial de cada emissor, seguindo a livre concorrência de mercado”.

Em média, os juros dos cartões brasileiros são de 323,14% ao ano, segundo pesquisa da Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, mas podem superar os 400%. Levantamento do iG com os maiores bancos do país verificou que as taxas variam de 30% ao ano – pagas pelo seleto grupo de clientes do HSBC com cartão Premier e renda mensal a partir de R$ 7 mil – a 419% ao ano, para quem faz suas dívidas no cartão Flex Nacional, do Santander. Veja a comparação abaixo:

BANCOS CLASSIFICAÇÃO TAXA AO MÊS TAXA AO ANO
CAIXA TAXA MÍNIMA 2,9% 40,1%
  TAXA MÁXIMA 9,5% 196,2%
HSBC TAXA MÍNIMA 2,3% 30,9%
  TAXA MÁXIMA 16% 490,5%
BRADESCO TAXA MÍNIMA 4,6% 71,5%
  TAXA MÁXIMA 14% 379,3%
ITAÚ UNIBANCO TAXA MÍNIMA 3,9% 58,3%
  TAXA MÁXIMA 9,9% 210,4%
BANCO DO BRASIL TAXA MÍNIMA 2,9% 40,3%
  TAXA MÁXIMA 5,7% 94,5%
SANTANDER TAXA MÍNIMA 3,9% 58,4%
  TAXA MÁXIMA 14,7% 419,1%


 

Assim, uma pequena compra no valor de R$ 10 pode se transformar em uma dívida de R$ 53,50 em um ano e de R$ 43 mil em cinco anos, segundo cálculos de Anísio Castelo Branco, professor de finanças do Senac São Paulo e Presidente do Instituto Brasileiro de Finanças, Perícias e Cálculos (Ibrafin). Para chegar neste número, ele considera uma cobrança mensal de 15%, o que já embute juros, multas, mora e outros encargos financeiros. Se a dívida fosse quitada em dois anos, o consumidor teria que pagar R$ 286,25 e, em quatro anos, R$ 8.194,01.

E o que justificaria esses resultados tão díspares? Um dos motivos geralmente apontado como razão dos altos juros dos cartões de crédito no país é a inadimplência e a dificuldade de cobrar os caloteiros. “Quando pede o cartão de crédito, o cliente não assina documento nenhum. Não há um instrumento jurídico. Se fica inadimplente, como a administradora do cartão vai cobrá-lo? Não tem instrumento jurídico”, afirma Otto Nogami, professor de Economia e Finanças do Insper. Assim, a tese é de que os altos juros pagos por aqueles que atrasam o pagamento compensaria a perda das instituições com aqueles que não conseguem honrar o compromisso.

De fato, faz sentido cobrar mais de alguns para compensar os não pagadores. No entanto, os índices de calote no Brasil não parecem ser o bastante para justificar juros tão altos. A inadimplência do cartão de crédito é de 8% no Brasil, a mesma de outros tipos de crédito, como o pessoal, de veículos, cheque especial e outros bens, cujos juros para os maus pagadores são bastante inferiores (de no máximo 119%, em média, para o cheque especial), segundo dados do Banco Central. Quando consideradas apenas as operações no rotativo, a inadimplência dos cartões sobre para 29,49%, mas esse tipo de transação corresponde a apenas cerca de 15% do total, segundo a Abecs.

Quando os índices brasileiros são comparados com o de outros países, a justificativa da inadimplência também perde força. Nos Estados Unidos, por exemplo, as dívidas de cartões não pagas são 3,11% do total, segundo dados da CreditCards.com, empresa norte-americana de pesquisas e informações sobre cartões. Apesar de a inadimplência ser metade da brasileira, os juros dos cartões por lá são quase 20 vezes menores do que os cobrados dos brasileiros, variando de 10,40% ao ano a, no máximo, 23,64% ao ano, segundo Ben Woolsey, diretor de pesquisa e marketing da CreditCards.com.

Os juros brasileiros também são os maiores da América Latina, que na maioria dos casos tem níveis de inadimplência semelhantes ao brasileiro. Pesquisa da Proteste mostra que os 323,14% do Brasil são muito superiores aos juros do segundo colocado, o Peru, de 55% ao ano, em média. Ainda que os sistemas de cobrança não sejam iguais em todos os países – Em alguns deles, por exemplo, o juro do inadimplente é calculado a partir da data da compra e não do vencimento da fatura, como no Brasil, a diferença é bastante expressiva e deixa o Brasil bem longe dos demais.

Uma eventual explicação para os altos juros dos cartões seria a existência de um elevado juro básico. No entanto, essa não é mais a realidade brasileira. Pelo contrário. Maria Inês Dolci, coordenadora da Proteste – Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, comenta que os juros dos cartões estão subindo, enquanto a Selic, que é a taxa que serve como referência para os juros do Brasil, está em queda. “Em janeiro, a média cobrada no rotativo era de 237,9%, bem menor do que a de junho, de 323,14%. No mesmo período, a Selic caiu de 11% a 8%,” diz.

Anísio Castelo Branco, professor de finanças do Senac São Paulo e Presidente do Instituto Brasileiro de Finanças, Perícias e Cálculos (Ibrafin), acrescenta que em outros países do mundo os juros dos cartões costumam acompanhar mais de perto as taxas referenciais. No Brasil, a diferença da Selic para a média dos juros dos cartões é de nada menos que 315 pontos percentuais.

Então qual seria a razão para taxas tão altas? Uma explicação presumível, na opinião de Castelo Branco, “é a esperteza” das instituições bancárias. Como não há um teto definido pelo governo, os bancos cobram o que acreditam ser o máximo que os brasileiros conseguem pagar.

Os bancos fazem isso, segundo o professor, porque querem que os clientes consigam pagar com atraso, sofrendo o efeito dos juros sobre a dívida. “Se todas as pessoas pagassem o cartão de crédito em dia, as administradoras quebravam. Então, por isso, o cartão de crédito quer o inadimplente, pois ganham muito mais dinheiro com a inadimplência do que com o negócio de cartões por si só,” diz o presidente do Ibrafin. Segundo ele, para saber qual o máximo que podem cobrar, os bancos provavelmente buscam uma taxa alta de equilíbrio em que o número de pagantes seja o alto e os juros também.

“Em locais mais organizados, o governo estabelece um máximo para os juros o que poderia ser feito pelo Conselho Monetário Nacional,” diz Castelo Branco, “mas o Brasil é muito desorganizado nestas questões.”

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