William Mendes (*)
“É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro
Evita o aperto de mão de um possível aliado
Convence as paredes do quarto e dorme tranquilo
Sabendo, no fundo do peito, que não era nada daquilo!”
(Raul Seixas – Por Quem os Sinos Dobram)
Depois de acompanhar um conjunto de boletins que o BB emitiu – através de sua Diref – sobre a situação da Cassi, e analisar seu modo de comunicar e o teor das ideias que transmite, de forma mais explícita ou mais dissimulada, é hora de uma manifestação mais veemente. Seja pela representação que me foi dada pelo corpo social, seja pelas convicções ideológicas que possuo, seja em nome de um mínimo de inteligência, densidade e humildade que presumo que todo gestor deve ter ao tratar de assunto tão caro e tão delicado como a nossa Cassi.
O que dá pra ver, sem equívoco de interpretação, é que o porta-voz do patrão optou pelo suposto “caminho fácil” de localizar sempre no outro, no externo, a responsabilidade pelo que “não dá certo”.
Já dedicou um boletim a sugerir que a Cassi tem sido mal gerida. Depois imputou ao modelo de Atenção Integral à Saúde o título de ineficaz – “interessante conceitualmente, mas não apresenta resultados”. Na sequência, sugeriu que as negociações com os prestadores de serviço não são firmes. E agora, direciona seu dedo julgador aos princípios que consagramos historicamente em nossa associação – como o da solidariedade e o do mutualismo -, quase assegurando que o problema da Cassi é sua própria identidade e a razão de sua criação.
Nem cabe dizer que o BB ou seu porta-voz querem o fim da Cassi que criamos, ou pelo menos, é o que parece. Temos que acreditar, até o último instante, que existe inteligência empresarial suficiente e que, no fundo, todos desejam ver nossa Caixa de Assistência perene, fortalecida e justa. Mas cabe, sim, cogitar que a vaidade de alguns executivos incumbidos desse debate esteja num patamar de “auto-suficiência” que comece a ter efeitos danosos para o interesse coletivo, ainda que de forma não tão consciente.
O que o mundo inteiro já sabe é que não há solução para a sustentabilidade de um sistema de saúde que consiga surgir de uma única e iluminada cabeça e, ainda sim, tenha consistência e consequência que ultrapasse um efeito pirotécnico em balanços para engordar currículos ambiciosos. E ainda assim, apenas em balanços no curto prazo, porque depois o problema não resolvido retorna, ainda mais agudo. Historicamente, as soluções melhores e mais duradouras vêm da discussão e participação de todos os segmentos da comunidade que interage naquele sistema.
É trabalho longo e difícil, mas possível. Porém, não tem em seus produtos esperados, costumeiramente, a projeção de indivíduos que queiram catapultar suas carreiras ou imortalizar seus nomes. Cuidar, desenvolver e dar perenidade para um sistema de saúde é muito parecido com o trabalho do saneamento básico numa cidade: a administração que se dedica a isso faz um bem inestimável para a comunidade; mas não possuirá garantia nenhuma de que isto produza votos ou notoriedade. Porque é um trabalho que não chama a atenção e nem sai em capa de revista.
Porém, garantir um sistema de saúde sustentável e resolutivo, preservando qualidade de vida de toda uma comunidade – na qual está sua própria família – já não é realização e ganho suficiente?
Dizem que se o diabo fosse escolher o seu pecado humano favorito, este seria o da vaidade. Porque em nome dela costumeiramente nos enterramos em todos os outros.
Chamar as pessoas para essa fórmula de raciocínio fácil, que deixa a culpa de tudo sempre no externo, no outro, é como abrir a Caixa de Pandora e achar que assim controlará o resultado. Abrir essa caixa é fácil. Recolher os monstros que saem dela para retomar domínio da situação, não. Geralmente, é um desastre.
Quando dizemos que a culpa do desequilíbrio do sistema é a solidariedade que defendemos, chamamos todos para identificar na pessoa do lado a culpa, a fonte do caos. Nada mais confortante: não preciso mudar nada em mim, basta mudar no outro. Ou: basta combater e punir o outro.
Está afirmado textualmente que não é justo que quem consome mais, pague igual. E isto fica camuflado na imagem daquele que tem “mais dependentes”. Uma superfície simples que pode nos fazer concordar apressadamente com a aparente lógica da frase.
Mas a tese presente no falso simplismo acima, na verdade, é: quem consome mais deveria pagar mais, porque assim o sistema estaria equilibrado.
Olhemos, então, para o mundo à nossa volta: temos várias organizações e/ou sistemas de saúde que não se baseiam em solidariedade e estão igualmente mergulhados em crises. Ou pior: já faliram. Então, mexer no princípio que norteou nossa identidade desde sua fundação, não é garantia de equilíbrio nenhum por si só. Só há uma garantia real e incontornável presente em tal medida; a de que estaremos mudando um princípio histórico nosso e que fez parte das razões pelas quais criamos a Cassi. E perder princípios geralmente está associado a perder identidade.
Criamos a Cassi para todos arrecadarem conforme suas possibilidades e cada um poder usar conforme suas necessidades. Faz parte de nosso espírito associativista e de nossa prática mutualista, interagir com ações que garantam a todos que o benefício existirá quando cada um precisar. E é da história dos sistemas de saúde que as necessidades dos integrantes de sua comunidade não ocorram todas ao mesmo tempo e/ou na mesma intensidade. Não fosse assim, nem seria possível ter um dia criado algum sistema de saúde, por mais rudimentar ou menos solidário que se apresentasse.
O sistema de saúde não é como um bufê a quilo ou como a bolsa de valores. Se acharmos que é, daí teríamos que abandonar mesmo a solidariedade. Mas o fato é que, ao longo de nossos ciclos de vida, nos alternaremos entre momentos nos quais contribuímos mais do que usamos e outros, nos quais usamos mais do que contribuímos. Quem proclama o discurso de que “o outro sempre consome mais do que eu”, deve ter estudado muito pouco a movimentação das despesas com saúde de uma comunidade e de cada um de seus indivíduos. Inclusive de si mesmo.
Se tivesse estudado esses números, veria que, com frequência, o portador de uma doença grave, o idoso e o politraumatizado – para citar algumas situações – consomem mais do que um casal na faixa dos 30/40 anos que possua três filhos pré-adolescentes. Veria que um único atleta que realiza muitas ressonâncias magnéticas para garantir que seu ganha-pão – o corpo – esteja bem, pode consumir regularmente mais do que o conjunto de sessões de psicomotricidade ocorridos no mesmo período para duas crianças com algum tipo de deficiência.
E é aí que mora o risco desse debate puxado de forma tão superficial e amadora: implantamos hoje a tese de responsabilizar quem necessitou mais dos serviços de saúde, mas afirmamos que só cobraremos diferente por causa do número de dependentes. Hoje. Pois amanhã, com o risco de desequilíbrio da sustentabilidade retornando, iremos apontar para o idoso. Depois, para o dependente químico. Na sequência, para o portador de câncer. Ou quem sabe o hemofílico. E por que não para os obesos? Afinal, deveriam ser magros e praticarem esportes (talvez entre meia-noite e seis da manhã, já que as jornadas de nossos colegas bancários são gigantes para cumprir metas impossíveis e ir e voltar para casa)… E assim sucessivamente.
Inevitavelmente, lá adiante veríamos que nada disso resolveu. Aí teríamos que finalmente nos voltar para as questões verdadeiramente estruturantes do sistema. Só que isso ocorreria num ambiente em que não mais nos veríamos como uma coletividade, o que diminuiria muito as chances de qualquer proposta ser ouvida, quanto mais aprovada. E decretaríamos a morte da Cassi. Provavelmente com algum gênio ainda dizendo que será muito melhor cada um buscar o seu plano no mercado.
Mas como isto levaria algum tempo – pois teríamos dado “sobrevida à paciente” – o porta-voz da solução superficial e equivocada de “responsabilizar” o outro já não estaria mais por perto para arcar com as consequências do que induziu todos a fazer. Sorte a dele; azar o nosso.
Ou temos a hombridade de assumir agora o trabalho árduo de reorganizar o sistema, encarar muito suor e pouco “glamour”, mas dar à Cassi uma chance real de equilíbrio e resolutividade, ou repetiremos a espiral dos truques mágicos que empurram o problema para a gestão e a geração seguintes, nos sepultando lentamente na descrença que crescerá silenciosa em cada um de nós.
O que propomos não é nenhuma mágica. É um trabalho difícil, mas real. Que tem sido feito pelo mundo. Em sistemas públicos sim; mas também em privados. Eis aí outro equívoco que algumas vozes repetem sem estudar ou refletir – a de que reorganizar o sistema não funcionará porque não somos um país -, talvez para justificar-se inconscientemente pelo fato de não terem sido mais efetivos.
Certamente cada um buscou dar o seu melhor, dentro de suas crenças, quando esteve à frente de alguma gestão da Cassi. Mas a solução está na junção de vários pensamentos. No que há de melhor em vários de nós. Não será um executivo que se considera auto-suficiente, ou um grupo que teme partilhar conhecimento e poder com outros, que darão conta de reorganizar um sistema de saúde. Este é um trabalho para muitas mãos. E por não ter sido tratado regularmente assim, interrompemos várias vezes o projeto de reorganização do sistema – que já aprovamos e reaprovamos no passado recente, convictos por tudo o que havíamos estudado e debatido. Ao interrompê-lo, obtivemos os efeitos que são obtidos quando se faz meia obra: resultado parcial aqui, nenhum resultado ali, bons mas episódicos resultados acolá.
Só que no lugar da autocrítica, nossa autodefesa formula um óbvio e tacanho veredito: “O modelo não funciona! Nossos princípios estão ultrapassados!”. Na hora do aperto, é mais fácil e menos doloroso do que admitir: “Sozinho não dou conta! Preciso de ajuda!”.
Por isso não há espaço para vaidades ou egocentrismos nos desafios da Cassi. Muito menos para a lastimável e perigosa solução catártica de culpar o outro. O outro que não soube gerenciar, o outro que usou demais e pagou de menos, o outro que pensa num modelo de saúde que exige muito trabalho e poucos louros, e todos os “outros” que se consiga imaginar para imputar uma explicação racional e binária de porque ainda temos problemas.
Embora louvável a disposição do BB de iniciar um ciclo de mensagens regulares em seus meios de comunicação sobre a Cassi, percebemos ainda em todas elas – até agora – o limite próprio de quem se considera auto-suficiente, e acaba por cometer atos-falhos, como o de dizer que o problema da Cassi é sua gestão. O BB está na gestão da Cassi regularmente há muito tempo, ao menos desde a década de 1970, ou de 1996, após a reforma do estatuto. O próprio porta-voz das mensagens patronais foi presidente e conselheiro da Cassi, e duvidamos que ele, conscientemente, esteja se definindo como gestor sem competência. Nesta mesma linha, ao criar seção virtual de perguntas e respostas sobre a Cassi, assume o papel de responder qualquer indagação, por mais técnica e específica que seja, sem qualquer consulta à própria Caixa de Assistência, como se tudo soubesse melhor do que ninguém.
A Cassi é fruto do espírito coletivo e das discussões sempre abertas, consistentes e focadas num mundo melhor, que tanto caracterizaram a atitude e a cultura dos funcionários do BB ao longo de sua história. Desenvolvemos um saber em relação à nossa saúde e ao sistema de saúde que queremos graças a essa atitude histórica e democrática. E é nessa postura que estão as respostas que farão a diferença.
Nós estamos prontos para fazer essa discussão de frente. Com humildade, mas com conteúdo e convicção.
Fica aqui o convite.
William Mendes
Diretor de Saúde e Rede de Atendimento da Cassi