Luciano Cerqueira*
Em artigo publicado no jornal O Globo, em 29 de março deste ano, foram criticados, a partir de uma frase dita pela ministra Matilde Ribeiro, o movimento negro e as pessoas que defendem uma discussão mais profunda sobre o racismo na sociedade brasileira. Concordo com o autor do artigo quando afirma que a frase da ministra foi infeliz. Também concordo com ele quando diz que, no mundo real, no Brasil real, todas as pessoas estão misturadas. Mas vou além. Mostrarei para vocês como tenho razão em afirmar isso e usarei alguns exemplos de como essa mistura ocorre.
Como dizer que as pessoas não estão misturadas nos bancos? Você vai ao banco e vê seguranças negros e faxineiras negras. Bem, a maioria das pessoas que trabalham nos caixas é branca e os gerentes também. Mas, veja bem, estão em harmonia, estamos misturados(as). Como dizer que não estamos misturados(as) nos shoppings? A lógica é a mesma, segurança e serviços gerais são os postos preferenciais das pessoas, elas não gostam muito de trabalhar como vendedores(as) ou gerentes de loja, pois isso é muito estressante. Fazem questão de deixar isso para brancos(as), o importante é estarem misturados(as).
Sabe onde também estamos misturados(as)? Nas universidades. Uma pesquisa feita pelo professor José Jorge de Carvalho entre as 12 principais universidades do país mostrou o seguinte resultado. Nas seis universidades utilizadas como exemplo (Unicamp, USP, UFMG, UFRJ, UnB e UFRGS), a soma total de professores(as) negros(as) é de 67. Isso mesmo: de um total de 15.866 docentes, há apenas 67 pessoas negras. Na USP, são 4.705 docentes e apenas cinco (sim, você não está lendo errado) deles são negros(as). Na UFRJ, são 30 negros(as) num quadro docente de 3.200. Perfazemos o espantoso percentual de 0,5% dos(as) docentes universitários(as) dessas seis instituições de ensino.
Quem duvida que não estamos integrados(as), misturados(as)? Em 2001, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), tínhamos 2,5% de pessoas negras com grau universitário, o mesmo percentual dos Estados Unidos – em 1947, quando estávamos no auge da segregação, intolerância e violência racial nos EUA. Agora vejam só, até as Nações Unidas gastando dinheiro com esse absurdo, onde vamos parar!
As praias brasileiras – principalmente as cariocas – são outro exemplo de que estamos misturados(as). Bem, há um detalhe: um grande número de pessoas brancas mora em frente às praias e a maioria das pessoas negras que se encontram nesses locais leva duas horas ou mais na volta para suas comunidades ou favelas em ônibus lotados. Existem, é claro, aqueles(as) que não moram tão longe assim das praias, que moram nos morros próximos.
Moradores e moradoras dos morros da zona sul carioca são privilegiados(as) nesse aspecto, mas não dão muita sorte quando a polícia sobe as comunidades, pois são vítimas de balas perdidas, confundidos(as) com bandidos, aliados(as) do tráfico, ladrões de carros etc. Por uma estranha coincidência, todas essas pessoas são negras.
Nossa mídia também dá um ótimo exemplo de mistura – ou será que ninguém nunca viu como estamos sempre presentes nos anúncios de banco, de carro, de manteiga, de iogurte, de imóveis, de leite, de cerveja, de seguro de vida e por aí vai? Mas é nas novelas que nos sentimos realmente misturados. Percebemos que de fato fazemos parte desta nação quando nos vemos representados como motoristas ou empregadas domésticas. Nada contra essas profissões, mas será que só atrizes e atores negros são bons em desempenhar tais papéis?
Daria para escrever pelo menos alguns livros com exemplos que mostram como pessoas negras e brancas estão misturadas. No entanto, pararei aqui, pois, agora, preciso discordar um pouco do artigo citado.
Discordo do artigo quando ele sugere que a ministra Matilde Ribeiro deveria estar presa, que ela e os movimentos negros querem fomentar o ódio racial, que querem repartir o Brasil em diversas raças, que lutar pela igualdade de oportunidades (no mundo real, e não no imaginário) é lutar por uma causa injusta, que são burras e ingênuas as pessoas que acreditam no racismo, que nosso dinheiro está sendo mal empregado quando paga as pessoas que trabalham na Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Com essas “pequenas” coisas eu não concordo.
Entendo que as pessoas não queiram mudar de opinião, entendo que não sendo racistas, acreditem que não exista racismo no Brasil (pode ser esse o caso do vice-presidente José Alencar), mas duvido muito de que as pessoas que dizem que o Brasil não é racista e que vivemos numa democracia racial (ainda há gente que acredita nisso?) estão olhando para o Brasil real. A nossa realidade é outra, matam jovens negros(as) como se fossem moscas, as mulheres negras recebem um quarto do salário de um homem branco, as pessoas negras são discriminadas nos órgãos públicos e, entre os 10% mais pobres da população, 70% são pessoas negras.
Não preciso mais esperar sentado a resposta à pergunta “Onde você guarda o seu racismo?”, feita pela campanha do grupo Diálogos Contra o Racismo. Ela já foi respondida.
*Pesquisador do Ibase
Publicado em 13/4/2006.
Notas de rodapé:
1 Pesquisa realizada pelo professor José Jorge de Carvalho, que pode ser encontrado no site http://www.unb.br/acs/bcopauta/ensinosuperior2.htm
2 Relatório de Desenvolvimento Humano – Brasil 2006 – Organizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.