Por Bernardo Kucinski*
Foi preciso uma tragédia para ficarmos sabendo que a linha 4 do metrô de São Paulo, uma gigantesca obra de engenharia, estava sendo construída através de um contrato de “porteira fechada”. O preço é fixo. Quanto mais o consórcio construtor economizar, mais ele lucra. Ninguém sabia disso porque a nossa imprensa nunca se interessou por esse contrato. Nunca o discutiu.
Os paulistanos não sabiam que a linha quatro era uma obra assim tão grande, nem sabiam das várias opções de métodos de construção dos túneis. Não sabiam nada. Só agora ficamos fomos informados que o método das explosões, usado na região do desastre, rachara dezenas de casas e há tempos assustava os moradores. Esses casos haviam sido tratados como pequenos episódios isolados, não ocorrendo a nenhum editor investigar mais a fundo a natureza das obras.
Alckmin escondido
Os paulistanos não sabiam que as obras eram fiscalizadas pelo próprio consórcio. Eles fiscalizavam-se a si mesmos. O Estado, dono da companhia do metrô, não assumiu nenhuma responsabilidade, admitiu o governador José Serra, depois de fugir um dia inteiro dos repórteres. Alckmin está escondido até hoje. E dele os jornais nem falam. Ele, que se apresentava como o melhor “gerente” para o Brasil.
Depois tantas tragédias, já é possível definir um padrão da cobertura de desastres no Brasil. De início, os jornalistas são surpreendidos. O desastre revela precariedades ou abusos pré-existentes que a imprensa não acompanha como deveria. Assim foi com o apagão do sistema elétrico, que estava todo desenhado nos mapas da ANEEL, sem que os jornalistas soubessem, porque não há mais repórteres especializados em energia.
Depois, foram surpreendidos pelo apagão do sistema de controle de tráfego aéreo, crise antiga, mas por eles desconhecida. Assim como não acompanharam o cumprindo do contrato de ajustamento de conduta entre a Mineradora Rio Pomba e o Ministério Público de Minas Gerais, depois do primeiro desastre da sua barragem, em março de 2006. Só se lembraram depois do desastre muito maior, do dia 10 deste mês. Numa segundo etapa, consumadas as tragédias, os jornalistas saem correndo atrás do prejuízo, mas sem fontes, sem métodos e sem conhecimentos especializados. Escrevem páginas e páginas de notícias fragmentadas, ora dizendo uma coisa, ora outra, jogando culpas e suspeitas por todos os lados – nunca assumindo a própria culpa, é claro. Esse traço da cobertura ficou muito evidente na queda do avião da Gol, o maior desastre aéreo da história do Brasil. Cada dia, era um outro pedacinho de informação que aparecia nos jornais, nem sempre de acordo com a do dia anterior ou encaixada no lugar certo do quebra-cabeças .
Fragmentação e sensacionalismo
Sem informação estruturante, os jovens jornalistas postam-se à beira do desastre, e passam a falar das vítimas, dos seus namorados, do fulano que escapou por sorte, porque perdeu o vôo ou não pegou aquela van. E assim por diante. É a fase do sensacionalismo. Se conseguirem fazer um entrevistado chorar, é a glória. A cena será repetida várias vezes. Surgem também os gigantescos mapas, infográficos, tudo o que deveríamos saber antes do desastre, aparece agora, depois da porta arrombada. No desastre da linha 4 os repórteres estavam tão aflitos e sem fontes, que entrevistaram falsos engenheiros e até falsos bombeiros, atraídos à cratera pelos holofotes da tevê.
Pode haver um ou outro repórter especializado, que tem fontes boas. Mas essa é a exceção e não a regra. Ao mesmo tempo em que cresceram as editorias de economia, foram, sendo extintas as de cidade, de educação, de saúde, de transporte. E só há uma reportagem, a “geral”, encarregada de cobrir tudo. Nesse sistema de “linha de produção”, os repórteres são obrigados a cumprir duas a três tarefas num único dia. Em algumas empresas, nem essa reportagem geral existe mais, tendo sido fundida com e agência de noticias da empresa.
Mas só a extinção das editorias especializadas não explica a negligência em acompanhar uma obra como a da linha 4 do metrô de São Paulo. Subjacente a essa negligência está uma cultura de desprezo pelos fatos e muito maior dedicação de tempo e energia editorial ao combate ideológico.
A extinção das editorias especializadas faz parte de todo um processo que vê a informação correta e bem contextualizada como um obstáculo ao uso ideológico dos fatos. O neoliberalismo reorganiza até a estrutura das redações.
Panfletos ideológicos
Muitos leitores ainda não perceberam que os jornalões brasileiros são hoje muito mais panfletos ideológicos do que boletins informativos. Jornais, revistas semanais e emissoras de tevê de maior audiência parecem ter formado uma espécie de “consórcio político”, com o objetivo central de combater políticas que rotulam a priori de “populistas”. Passaram um ano e meio dedicando tanto espaço e energia no combate ao governo Lula e ás CPIs da oposição, que se esqueceram dos fatos e processos do Brasil real.
A terceira fase da cobertura padrão dos desastres é justamente a mais ideológica. É quando buscam escamotear as verdadeiras causas das tragédias: o esvaziamento do Estado promovido pelos neoliberais, a privatização do setor elétrico, a terceirização dos serviços, a não contratação de novos servidores, a falta de fiscais, a subordinação a regras de privatização do FMI e pelo Banco Mundial. Enfim, a privatização generalizada do Estado, da qual o desastre da Rua Capri revelou uma nova dimensão, a privatização até mesmo das responsabilidades do Estado, expressa na frase do governador José Serra: “a responsabilidade é das empreiteiras.”
Dois pesos
Faz parte do padrão de manipulação ideológica dos desastres o uso de dois pesos e duas medidas: complacência com autoridades envolvidas, se foram do campo conservador e a crítica impiedosa e repetida, se foram do campo popular. Basta comparar editoriais da Folha e do Estadão, nos casos do mero entupimento do túnel da Rebouças que não matou ninguém, construído na gestão Marta Suplicy, e os do desabamento da Rua Capri, que matou seis pessoas e talvez uma sétima.
O editorial do Estadão, apesar de reconhecer a “gravidade do acidente” da Rua Capri, fala de “reações emocionais registradas pela imprensa”. Reconhece a necessidade de apuração das causas. Mas sem esperar por essa apuração, já vai defendendo as empreiteiras:”que têm uma folha de serviços prestados no país e no exterior que não deixa dúvidas quanto ao seu preparo técnico.”
Nem uma palavra de crítica ao governo do Estado ou ao contrato de porteira fechada. Ao contrário, diz “ serem precipitadas as afirmações de que o acidente teria sido resultado da pressa com que, por razões políticas, as obras estariam sendo executadas”. A Folha também diz que “não é o momento de precipitar-se na busca das causas e responsáveis pelo acidente.” Mas no caso do túnel Rebouças, sem esperar por laudo nenhum, o jornal foi logo acusando “a obra foi realizada às pressas e sem observar padrões mínimos de qualidade apenas para conquistar votos, como parece ter sido o caso do referido túnel”.
Prestem bem atenção: passada a fase sensacionalista, calma e ponderação, vão ser as palavras de ordem dos jornalões para a quarta etapa da cobertura desse desastre. Trata-se da etapa prolongada na qual vão começar a sair laudos, vão ser ouvidas testemunhas nos inquéritos.
Talvez se instale uma CPI, que nenhum dos jornalões exigiu. A probabilidade é que tenham sido muitas as causas e não uma só – mais ou menos como aconteceu na queda do avião da Gol. Ou seja, uma provável falta de rigor ao longo de todo o processo, devido à natureza do contrato, de modo que a falha em uma fase não é detectada e corrigida na outra. Isso significa que Serra e sua base tucana paulista poderiam sofrer um prolongado desgaste, atravessando este ano todo e entrando por 2008. É isso que os jornalões vão evitar.
* Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é editor-associado da Carta Maior. É autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000). O artigo foi originalmente escrito para a Carta Maior.