Por Neide Fonseca*
O Código criminal do Império, editado em 16/12/1830, à época considerado símbolo da modernidade e das novas idéias liberais, continha entre seus 312 artigos, um conteúdo de normas que visavam a contenção da rebeldia negra, seja entre os escravos, ou mesmo entre livres e libertos. Um desses artigos fixava a responsabilidade penal em 14 anos. E um outro artigo ainda fixava a pena de morte.
Logo após a Proclamação da República, encomendou-se um novo código penal, que foi convertido em lei em 11/10/1890. O novo código aboliu a pena de morte, entretanto, fixou a responsabilidade penal em 9 anos.
Nina Rodrigues, médico famoso à época, até hoje festejado por alguns no meio acadêmico, aplaudiu a fixação em 9 anos dizendo: “O nosso código penal vigente,….trouxe-nos portanto um progresso reduzindo a menoridade de 14 para 09 annos (…) Os povos civilisados mais cultos, o inglez, o italiano, o allemão, por exemplo, cujas cerebrações devem ser de mais lento desenvolvimento, se contentam com 07, 09, 12 annos; no Brazil, por causa das suas raças selvagens e barbaras, o limite de 14 annos ainda era pequeno! (…) as raças inferiores chegam á puberdade mais cedo do que as superiores (…) o menino negro é precoce, affirma ainda Letorneau; muitas vezes excede ao menino branco da mesma idade; mas cedo seus progressos param: o fructo precoce aborta (…) quanto mais baixa fôr a idade em que a acção da Justiça, ou melhor do Estado se puder excercer sobre os menores, maiores probabilidades de exito terá ella, visto como poderá chegar ainda a tempo de impedir a influência deleteria de um meio pernicioso sobre um caracter em via de formação, em época em que a acção delles ainda possa ser dotada de efficacia”.
A redução da idade penal tinha um objetivo: o genocídio de crianças negras, que recém saídas do processo escravagista viviam em famílias desestruturadas, pelo modo como se deu o fim da escravidão no Brasil.
Assim como outrora essas idéias serviram para encarcerar e exterminar milhares de crianças, servirá agora se passar Projeto de lei que prevê a redução da menoridade penal para 14 anos, para encarcerar os pobres, na sua maioria pretos.
Não é a redução da idade penal que resolve um problema estrutural. Se fosse assim teríamos que dar a mão à palmatória a Nina Rodrigues.
Entretanto, a mídia irresponsável e pessoas desavisadas, muitas até podemos entender, estão feridas por terem perdido entes queridos, instigam o debate para a redução da idade penal.
Não estamos aqui defendendo que não aja punição. A sociedade tem em mãos um instrumento pelo qual, entretanto, nunca lutou para ver implementado de fato: é o ECA – Estatuto da criança e do adolescente.
Há um clamor por parte de alguns segmentos da sociedade para que haja um aumento da interferência do Direito Penal na realidade social, sob o disfarce de que é preciso conter a criatividade dos criminosos.
É um disfarce, porque não querem ou não buscam solução para os problemas sociais, querem apenas ter a certeza de que os “desajustados sociais” estarão bem enjaulados. Mas não será a prisão como espaço institucional que não reeduca, não prepara o egresso para o convívio social, ao contrário embrutece mais aqueles que lá estão, que resolverá a questão.
Ao invés de termos como objetivo o reajuste do cidadão ou cidadã à sociedade, há uma tradição ou sentimento de vingança, que quer ver a pessoa atrás das grades sem se importar como o sistema prisional funciona no Brasil.
Michel Foucault com profundo senso crítico aborda, em seu livro Vigiar e Punir, o secular problema da resposta social ao crime, mostrando a evolução humana na forma de tratar o criminoso e o crime. Neste sentido, não evoluímos praticamente nada, a redução da idade penal tem um único sentimento: o da vingança, não o de resolver os profundos problemas sociais que temos.
Se Nina Rodrigues, estivesse vivo, quem sabe, proporia a idade penal para 1 ano de idade, já que a Constituição de 1890 não conseguiu exercer o papel que ele tanto desejava.
O Presidente Lula está certo quando diz que reduzir a idade penal não resolve o problema, por isso nós, que acreditamos que um outro mundo é possível, devemos nos mobilizar pela Não diminuição da idade penal, e Sim por uma política pública social de inclusão, de melhor distribuição de renda, de emprego decente, escola pública de qualidade com igualdade de oportunidades e de tratamento para todos e todas.
* Neide Aparecida Fonseca é diretora da Contraf-CUT, presidenta do Inspir e presidenta da Uni Américas Mulheres