ARTIGO: Algumas reflexäes sobre a crise de Carta Maior

Por Bernardo Kucinski*

Apesar de três décadas nos separarem do último ciclo de imprensa alternativa no Brasil e no mundo, quando circularam jornais importantes como Movimento, Opinião, Coojornal e Pasquim, as principais razões da crise de Carta Maior lembram as que levaram ao desaparecimento de quase todos aqueles jornais: esgotamento do projeto político e dificuldades de gerenciamento de uma aventura alternativa num ambiente capitalista. São razões portanto recorrentes, inerentes à natureza do alternativo.

O alternativo é diferente não só nas suas idéias contra-corrente, também na sua organização, em que predominam o voluntarismo e a cooperação não monetária, e no envolvimento emotivo dos seus jornalistas. No alternativo, jornalistas e intelectuais não são pagos para defender idéias dos outros, são mal pagos para dizer exatamente o que pensam. No alternativo, a noticia não é mercadoria: é valor de uso e não de troca. Não há nada mais anticapitalista do que isso, ainda que o alternativo tenha que pagar alguns salários e aluguéis, usar alguma publicidade.

É esse o referencial dos problemas gerenciais da Carta Maior. Não se trata de um desafio gerencial comum, mas de como encontrar soluções não capitalistas num ambiente totalmente capitalista. Outro complicador é a natureza intrinsecamente gratuita do acesso a veículos da internet. Isso é bom para a democracia, bom para o ser humano. Enfim, uma tecnologia que já nasce como valor de uso e não para ser valor de troca. Mas, por isso mesmo, até hoje não se resolveu o problema da sustentação financeira dos veículos de internet, exceto através de parcerias com empresas capitalistas e fortes: provedores, vendedores de produtos, ou associação com jornais e revistas de assinatura paga.

Pergunto aos nossos leitores mais jovens e mais afeitos às novas tecnologias: Se Carta Maior tem vinte e oito mil acessos por dia, em média, não seria possível criar uma ferramenta pela qual os leitores que o quisessem depositariam numa conta de Carta Maior, o valor de um cafezinho? Se apenas um em cada dez transferirem esse valor, a receita seria de R$ 4.000,00 por dia, ou cerca de R$ 100 mil por mês, o suficiente para sustentar uma redação enxuta e o suporte físico do site. Essa é a melhor solução porque instituiria o verdadeiro financiamento público de um site.

Carta Maior já esteve na vanguarda de algumas soluções tecnológicas, entre as quais a divulgação pela internet de debates televisionados ao vivo. Também criou o que os marqueteiros chamariam de “nicho de mercado”, ao fazer as coberturas mais amplas de todos os Fórum Sociais Mundiais, tornando-se uma referência internacional sobre os fóruns.

A solução gerencial de Carta Maior pode ser minimalista, limitando-se ao papel de espaço de debates de temas importantes da atualidade, com apenas um editor, acionando um grupo de colaboradores estrategicamente situados no espaço do pensamento critico, ou mais ambiciosa, tentando incorporar todos os recursos das novas tecnologias, criando produtos e subprodutos diversos, que seriam bancados tanto de modo não capitalista por entidades sem fins lucrativos e governos, como pela venda comercial. Temo que o momento para a solução mais ambiciosa já tenha passado. Até mesmo porque ela exigiria folga de recursos, capital para ser investido por um bom tempo, antes de obter pelo menos um empate entre entradas e saídas.

Seja qual for a solução, coloca-se a segunda questão: qual o projeto político de Carta Maior? E teria esse projeto se esgotado? Na década de 70, todos os jornais alternativos, mesmo os humorísticos ou existenciais, combatiam ferozmente a ditadura, e quase todos os de natureza estritamente política eram constituídos por uma aliança de ativistas de vários partidos ou correntes políticas clandestinos, mais alguns jornalistas e intelectuais. O esgotamento aconteceu de uma hora para a outra, em 1981, quando a anistia política abriu espaço para que cada corrente política tivesse seu próprio jornal, fundasse seu próprio partido. O que unia as equipes, o combate à ditadura, tinha acabado. Agora vinha o que os separaria para sempre: as propostas para o futuro do Brasil. Cada grupo tinha a sua receita. Cada grupo precisava acentuar as diferenças para consolidar sua identidade no novo ambiente de democracia e disputa aberta de votos e de militantes. A imprensa alternativa havia esgotado o seu papel.

Estaria acontecendo o mesmo conosco? Creio que apenas em parte: ao fundar Carta Maior, Joaquim Palhares aglutinou jornalistas e intelectuais de convicções socialistas interessados em mudar o Brasil, através da primeira eleição de um líder operário para a presidência e de tudo o que vem junto com isso. Quase ao mesmo tempo, no bojo do mesmo movimento, fomos praticamente co-fundadores do Fórum Social Mundial, e tivemos papel proeminente na sua cobertura e em tudo o que também se segue, aglutinamos jovens mais motivados pelas causas ambientais e outras causas nobres, com a dos direitos humanos.

Com a eleição de Lula e de tantos outros líderes populares na América Latina, em especial a de Evo Morales na Bolívia, levando pela primeira vez um índio à presidência, viramos, por assim dizer, quase-governo. E não só no Brasil, mas num âmbito regional. Ainda não mudamos o Brasil ou a América Latina, mas colocamos um dique ao avanço do neoliberalismo. Se somos quase governo, temos que lutar por mudanças a partir de uma outra ótica, a da co-responsabilidade e da aceitação de compromissos nem sempre fáceis de engolir, mas que são inerentes á prática da política.

O novo quadro exige um grande amadurecimento e uma postura que nós, oposicionistas por construção e hábito, temos dificuldade em adotar. Mesmo porque a situação é quase única: trata-se de continuar perseguindo a utopia em uma situação nada utópica, na qual nossos amigos e companheiros, inclusive nosso companheiro Lula, são governo. Trata-se de entender a importância transcendental do governo Lula no Brasil e na América Latina, sem cair no mero governismo ou na solução fácil de alinhamento com uma das tendências do PT ou um dos grupos de articulação de poder no governo. Também não se trata da complacente “crítica construtiva”, e sim da crítica que entenda a dimensão histórica deste governo e por isso mesmo seja ainda mais profunda e muito mais responsável.

Com a chegada ao governo das novas lideranças latino-americanas, a começar por Lula, também se esvaziou em parte a idéia central do Fórum Social Mundial de fazer política apenas nas organizações de base, não governamentais e nos movimentos sociais, relegando partidos políticos e programas político-ideológicos estruturados a segundo plano.

Essa superação aparece com clareza na agenda ambientalista, muitas vezes autocentrada, que a partir de uma ótica basista, combate, por exemplo, o projeto São Francisco, o mais importante projeto ambientalista do governo Lula, que, ao contrário de esquecer um rio secularmente devastado, assumiu a promessa de sua recuperação e em sintonia com políticas regionais de desenvolvimento. O mesmo equívoco se dá, em alguns casos, no combate ambiental à construção de usinas hidrelétricas. É como se estivéssemos na mais ferrenha oposição à ditadura militar e não fôssemos co-responsáveis pela eleição de Lula, muito menos, responsáveis pelo suprimento de energia, e pela criação de empregos. Ao mesmo tempo, o ambientalismo brasileiro está demorando demais em entender a urgência e a prioridade do combate ao efeito estufa. Quase não se interessam, por exemplo, pela implementação no Brasil do protocolo de Quioto. Carta Maior precisa rediscutir sua postura e suas prioridades na agenda ambientalista e dos movimentos sociais. Se não devemos ser mera correia transportadora do governo que ajudamos a eleger, também não devemos ser de ongues, sindicatos e movimentos sociais.

E o que o governo tem a ver com a crise de Carta Maior? Se ajudamos e eleger esse governo, como de fato ajudamos, qual deveria ser a postura do governo frente ao risco de fechamento de Carta Maior? A máquina do governo também precisa entender o novo momento. Esgotou-se o tipo de apoio que davam a projetos alternativos, obtido sempre a fórceps, irregular, quase como um favor. É mais do que hora de criar políticas públicas de apoio à imprensa experimental, alternativa, regional e cultural, para que esses apoios sejam de caráter universal, e de interesse público. A iniciativa do presidente de propor a rede pública de rádio e TV mostra que é possível implantar no segundo mandato algumas propostas que já haviam sido elaboradas no primeiro, mas ficaram engavetadas por falta de vontade política ou pelo atropelo da crise.

Entre essas propostas está a do vale-jornal, que daria a todo cidadão sem recursos suficientes um vale para receber o jornal de sua preferência. Essa proposta já estava em grau avançado de elaboração. Numa primeira fase, receberiam o vale jornal cidadãos já cadastrados em programas sociais, por exemplo, estudantes inscritos no programa Prouni. Os jornais também entrariam no programa segundo alguns critérios, como o de acrescentar uma página de noticiário em linguagem mais acessível e empregar mais um jornalista na sua redação.

Outra proposta que o governo deveria retomar era a do programa de apoio à consolidação de veículos sem fins prioritariamente lucrativos, que selecionaria anualmente dez veículos impressos, dez rádios comunitárias e dez sites de internet, desde que com mais de um ano de existência e capazes de justificar a necessidade de apoio de consolidação. Seus projetos seriam selecionados por um comitê técnico independente. Se a Secom e as empresas estatais alocassem a esses programas e políticas públicas apenas 3% de suas verbas publicitárias, já se daria um grande salto na qualidade na mídia brasileira.

* Bernardo Kucinski é jornalista e professor da Universidade de São Paulo e editor-associado da Carta Maior. É autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

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