ARTIGO: A f£ria do ex-diretor

Por Gilson Caroni Filho*

Vale a pena refletir sobre os motivos que levam experiente jornalista a ter o seu dia de fúria. Principalmente, quando o motivo é um artigo publicado em Carta Maior, no dia 12 de junho. No Observatório da Imprensa, que também o publicou, em sua edição retrasada, o ex-redator de um dos mais conservadores veículos da imprensa brasileira acionou sua metralhadora giratória. A sensatez foi o único alvo atingido.

Quando registro de evidência é interpretado como conspiracionismo mal-intencionado, não estamos diante de um mero problema semântico. Há algo profundo no jogo das palavras. Ainda mais quando quem as maneja tem, por dever de ofício, que escrever com precisão e clareza.

O artigo do ex-diretor de redação de O Estado de S. Paulo Sandro Vaia é uma demonstração cabal de como andam juntos estilo agressivo e ética ambígua. Por sinal, um não sobrevive sem o outro. O primeiro é ferramenta dos que adotam a razão cínica como norte de ação.

O autor me acusa de escrever sucessivas cantilenas com o intuito de “contrabandear lixos ideológicos" e “desmoralizar a liberdade de imprensa", para realizar o que ele afirma ser o "meu sonho secreto": "Um mundo de Pravdas e Granmmas".

Não deixam de ser reveladoras as afirmações. Freud, em “A interpretação dos sonhos", jamais se permitiu legislar sobre a pertinência da narrativa dos pacientes com quem mantinha contato direto. O jornalismo brasileiro, a julgar pelo texto de Sandro Vaia, não só é judicativo no campo onírico,como é capaz de adivinhar sonhos que jamais lhe foram relatados. Será que algo semelhante ocorre quando um editorial é escrito, prezado jornalista? Em caso afirmativo, estaremos diante de loucos varridos ou de profissionais mal-intencionados mesmo? Pessoas que negam espaço discursivo a atores que contrariam os interesses dos donos dos meios?

Sandro bem sabe como a grande imprensa promove seus recortes. Movimentos sociais que se disponham a agenciar demandas de setores excluídos, a apresentá-los como sujeitos dotados de direitos são, a priori, não-notícia. A menos que sejam envoltos em prática de significação que rotule como baderneiros todos os que se apresentem como contrapoder às relações de expropriação e dominação. Estarei, segundo os critérios do ex-diretor, enveredando pelo pernosticismo, ou descrevendo fielmente a prática diária de veículos da grande imprensa?

Isso pode até ser "liberdade de imprensa", mas, é um tipo de liberdade que, para existir, precisa se sobrepor a outra, de capital importância para a cidadania: a liberdade de informação. E é por isso que escrevo para espaços democráticos. Não pretendo tolher a atividade jornalística. Meu objetivo é o oposto disso. Luto por uma imprensa que enriqueça o debate e ajude a consolidar esfera pública efetiva. Será que fui suficientemente claro, agora? Ou é preciso um pequeno glossário de política?

Mas voltemos ao seu artigo. O título (“Máfia dos caça-níqueis. Vavá usou nome de Lula; 13 presos são liberados") que Vaia afirma ser "técnica consagrada em jornalismo, de sentenças curtas e objetivas, resumindo no título as informações mais importantes sobre um determinado tema", não é tão inofensivo como ele pretende. Ora, desde quando "técnicas consagradas" não se prestam à prestidigitação? Leads, sub-leads e títulos são neutros por serem instrumentos da narrativa jornalística? Quando ele indaga “o que há nesse título que não seja informação factual? Não existe máfia dos caça-níqueis? Vavá não usou o nome de Lula? Treze presos não foram liberados naquele dia? Então, cadê o erro? Onde está a opinião?” A resposta é tão simples que constrange: no texto travestido de informação. É tão elementar que só posso interpretar o questionamento como um exercício de espirituosidade do jornalista.

O mais interessante vem depois. Quando, para reforçar sua posição sobre meu suposto conspiracionismo, Sandro Vaia enfatiza que "devemos deduzir, por certo, que algum representante das tais 13 famílias foi escalado para cobrir o plantão do UOL naquele sábado à tarde para "maquiavelar" o tal título, assoprando ao sonolento redator, entorpecido pela feijoada de sábado, a pérfida armação do título conspiratório", dou a mão à palmatória. Isso é que é "jornalismo investigativo"! Não só conseguiu reconstituir o estado em que se encontrava o redator do UOL, como foi capaz de adivinhar o que havia comido no almoço. É preciso muita argúcia para chegar à perfeição.

O bravo ex-diretor do Estadão não parou por aí. Não faltou o argumento de autoridade: “o professor nunca deve ter passado por uma redação.” A empáfia é desnecessária. Há muita gente, que passou anos em várias, e afirma o caráter golpista da imprensa: Paulo Henrique Amorim, Mino Carta, Luis Nassif são bem mais assertivos que esse autor. E continuam a travar a boa luta em suas colunas, revistas e blogs.

Aos que pedem mais evidências do conluio entre a grande imprensa e o bloco de poder conservador, asseguro que tentarei não frustrá-los.

Talvez os mais jovens não saibam e os demais não se recordem em detalhes. Assim,nada custa resgatar um episódio que marcou as eleições de 1994. O então ministro da Fazenda de Itamar Franco, Rubens Ricupero, desenvolve uma conversa informal com seu cunhado e jornalista da Globo, Carlos Monforte (a irmã do jornalista era, à época, mulher do ex-ministro). O que eles não sabiam é que a conversa estava sendo transmitida ao vivo, via satélite (antenas parabólicas estavam sintonizadas no canal privativo de satélite da Rede). Entre outras coisas, Ricupero diz que emissora dos Marinhos o utilizava para falar do Plano Real e fazer propaganda para o então candidato FHC: "(…) Ele (FHC) sabe que o grande eleitor dele hoje sou eu. Por exemplo, para a Rede Globo foi um achado. Porque eles, em vez de terem que dar apoio ostensivo a ele, botam a mim no ar e ninguém pode dizer nada."

"(…) "Isso não ocorreu da outra vez. Essa é um solução, digamos, indireta, né?" (da "outra vez", em 1989, a Globo havia dado apoio "direto", ostensivo, a Collor.) Quem quiser, ouvir um trecho bem maior pode acessar o vídeo no Youtube.

E então, quem está vestindo fantasias e tecendo tramas conspiratórias? O jornalista que diz sair em defesa de uma instituição ilibada ou este conhecido antidemocrata que insiste em escrever na mídia alternativa?

Ainda assim, haverá quem retruque que estou me remetendo ao passado, para fugir de um presente que me seria incômodo por refutar idéias centrais dos meus textos. Quando esta edição estiver no ar, a reportagem de Carta Capital sobre uma pesquisa do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro), que mostra o comportamento da Folha, do Estadão, do Globo e do JB nas eleições presidenciais de 2006, já será de conhecimento público, mas não posso deixar de reproduzir trechos da entrevista concedida por Marcus Figueiredo, cientista político e coordenador da pesquisa, ao jornalista Paulo Henrique Amorim. São as evidências, Sandro Vaia, as evidências que tanto incomodam. Veja o que ele fala sobre o comportamento dos que entraram pela porta da frente das grandes redações.

"Esta é uma linha de pesquisa que estamos fazendo já há alguns anos. Neste ano, sobre as eleições de 2006, ficou absolutamente patente que a grande imprensa, os grandes jornais do Brasil tiveram comportamento muito enviesado contra a candidatura do presidente Lula. As razões pra isso podem ser de várias ordens. Desde a questão do ponto de vista moral, do ponto de vista das articulações políticas, por conta de os escândalos todos que ocorreram nos últimos dois, três anos. Entretanto, essas são questões que fazem parte da política, que são resolvidas politicamente, foram resolvidas institucionalmente, algumas os principais assessores do presidente foram afastados, alguns foram punidos ou absolvidos pelo próprio Congresso de forma que, do ponto de vista institucional o presidente fez o que podia ser feito. Entretanto, permaneceu como o tom da grande mídia esta oposição em relação à candidatura do presidente. Agora, chamo a atenção para um detalhe importantíssimo: o excesso e o tom mais alto de críticas era em direção às atividades políticas do presidente e da própria campanha. Entretanto, quando a gente continua vendo os jornais – todos eles – e vamos pras páginas de economia, só aparecem notícias que são favoráveis ao governo e, obviamente, ao presidente Lula pela condução da economia e também na parte social. Portanto, o que ficou absolutamente claro é que nós assistimos a uma cobertura que tinham dois lados, eram duas faces da mesma moeda, ou seja, numa face a mídia posicionou-se enviesada contra a candidatura. Na outra face, ela estava inteiramente favorável ao desempenho na área econômica e social do presidente.”

Indagado sobre a aparente esquizofrenia da mídia, Marcus conclui: “eu tenho uma leve impressão, que é extremamente difícil de demonstrar, que houve um total desencantamento com a figura, com o presidente, na medida em que ele, pela sua história, acabou dando certo como um presidente. E ela dando certo significa a possibilidade de uma alternância de poder substituindo as velhas lideranças, as velhas oligarquias, a velha elite que sempre comandou o país e sem conseqüências drásticas. Apenas, evidentemente, uma mudança de rumo na política".

E agora, jornalista Sandro Vaia, quem é o escorpião da fábula? Quem quer perpetuar velhas oligarquias, saindo em defesa incondicional do conteúdo produzido por suas oficinas? Ou quem se propõe a pensar a mídia como algo a ser reinventado para a democracia. Esopo sabe a resposta.

 

* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil, Observatório da Imprensa e La Insignia. Escreveu originalmente este artigo para a Carta Maior (www.cartamaior.com.br).

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