Alckmin ignora conflito de interesses em processo da Nossa Caixa

(São Paulo) Em entrevista ao programa Roda Viva concedida na noite deste domingo (22), o ex-governador e candidato à Presidência da República Geraldo Alckmin voltou a defender os processos de privatização ocorridos recentemente no país, tanto em âmbito federal como estadual. Em São Paulo, uma das privatizações mais recentes, que vem sendo inclusive questionada na Justiça, é a da Nossa Caixa Seguros e Previdência, subsidiária do grupo. Em janeiro de 2006, uma Ação Popular movida pelo diretor da Federação dos Bancários de São Paulo (Fetec), Elias Maalouf, que corre na 13ª Vara Federal, levantou uma série de irregularidades no processo, entre elas, a atuação do empresário Ruy Martins Altenfelder. Membro do conselho do Programa Estadual de Desestatização (PED), o grupo do governo responsável por definir os critérios de venda das estatais, Altenfelder era, à época, e é até hoje, membro do conselho de administração da espanhola Mapfre Vera Cruz Seguradora, a empresa privada que, em maio de 2005, disputou e venceu o leilão da Nossa Caixa Seguro e Previdência. A lei de licitações proíbe que a parte interessada na privatização participe de decisões públicas como esta.

A história não é novidade. Foi denunciada pela Carta Maior no início deste ano (leia matéria “Ex-secretário de Alckmin é acionista de empresa que comprou subsidiária”), mas, até agora, não repercutiu na grande imprensa. Na última quarta-feira, no entanto, o editor assistente de política da revista Época, durante a entrevista dada por Alckmin à RedeTV!, questionou o candidato sobre o assunto:

”Quando o senhor indicou esse senhor pra preparar a privatização da Nossa Caixa Seguros e Previdência, o senhor já sabia que ele era conselheiro de uma empresa privada de seguros? Se não sabia, qual sua opinião a respeito do caso? O senhor acha correto e legítimo a mesma pessoa definir o critério da privatização e ao mesmo tempo participar da privatização como compradora?”, perguntou o jornalista.

Depois de defender Altenfelder, a quem elogiou como “uma das pessoas mais corretas” que conhece, e de afirmar que todos os leilões da Nossa Caixa Seguro e Previdência foram públicos, feitos na Bovespa, Alckmin declarou: “eu não vejo nenhum problema”.

Altenfelder, que foi ainda secretário de Ciência e Tecnologia do governo tucano e um dos nomes indicados pra entrar no comitê da campanha de Alckmin à Presidência, também não. Em nota enviada à Carta Maior quando da publicação da primeira reportagem, o empresário afirmou que “não participou das deliberações do Conselho Diretor do PED em todas as matérias sobre o tema de seguros, por questão de foro íntimo (ético e legal)”. À Época – conforme publicado nesta sexta (20) no blog da revista – ele disse que não há conflito de interesses nesse caso porque se retirava da sala de reuniões do PED quando o assunto era Nossa Caixa.

No entanto, em duas atas de reuniões do Conselho do PED obtidas pela reportagem da Carta Maior, a ausência de Altenfelder nos debates não está registrada. A ata da 144ª reunião registra a participação do empresário – que entrou no grupo por “livre escolha do governador Alckmin” – na deliberação que levou à divisão do Banco Nossa Caixa em sete subsidiárias e na formulação dos editais que deram corpo para o leilão da primeira empresa. Já a ata da 170a reunião, realizada em dezembro de 2004, mostra a participação do empresário nas discussões sobre as principais premissas macroeconômicas adotadas, bem como as variáveis e os parâmetros utilizados nas análises para determinação do valor econômico da Nossa Caixa Seguro e Previdência para a sua privatização. Nesta mesma reunião, foram apresentados os resultados obtidos para a fixação do preço mínimo para a venda das ações da sociedade e os critérios de participação no leilão da privatização.

Entre os requisitos aprovados pelo Conselho do PED para essa participação estavam: a) patrimônio líquido mínimo de R$ 50 milhões; b) experiência mínima de cinco anos na venda de seguros; e c) receita de prêmios emitidos superior a R$ 200 milhões no último exercício. Pela ata, o Conselho recomendou, para a aprovação do governador, entre outros pontos, que a alienação correspondesse a 51% do capital social da empresa; que o preço mínimo do leilão para lote único fosse de R$ 154.020.000,00; que a liquidação financeira fosse efetuada à vista, em uma única parcela; e os critérios para o veto à participação de determinadas instituições financeiras e entidades integrantes da administração pública no leilão de privatização.

De acordo com Altenfelder, a informação de que ele não participou desses debates não consta nas referidas atas por um equívoco de quem redigiu os documentos. Segundo o empresário, este equívoco “está expresso na ata da 182ª reunião do referido Conselho, publicada no Diário Oficial em 4 de março”. Nesta ata, registra-se que o ex-secretário do governo Alckmin não teria participado de votações anteriores relacionadas à privatização da Nossa Caixa Seguro e Previdência. O curioso é que Altenfelder só lembrou de fazer essa “retificação” das atas anteriores mais de um ano depois e, coincidentemente, na primeira reunião do Conselho do PED realizada após a Justiça ter aceito a Ação Popular movida contra a privatização da subsidiária.

Mesmo que Ruy Martins Altenfelder tenha se abstido das votações das decisões do processo de privatização da Nossa Caixa Seguro e Previdência, do ponto de vista jurídico questiona-se se a sua participação nos debates em si já não seria problemática. Como mostrado nas referidas atas, o conselho do PED debate questões estratégicas, como se uma empresa pode ou não disputar um leilão ou o preço mínimo das ações. Mesmo que não vote, Altenfelder, além de ter tido acesso a informações que poderiam ter sido levadas à Mapfre, poderia exercer influência nas discussões da privatização da subsidiária.

É essa a opinião da professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, chefe do departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, e especialista em direito administrativo. Para ela, neste caso, há um claro conflito de interesses em questão.

“Não acho correto. O fato de uma pessoa se abster das votações não muda em nada o problema, porque durante o debate ela pode influenciar os outros. Há um conflito de interesses muito visível. De um lado está o Estado, que vai fazer a privatização, que tem que escolher a empresa; de outro, a empresa escolhida. Nesta situação, ele participa de dois órgãos com interesses conflitantes: um está querendo privatizar e outro, comprar”, explica Maria Sylvia. Segundo ela, essa postura fere o princípio da moralidade na administração pública. “Moralidade exige honestidade, imparcialidade, noção do que é certo e errado. E, neste caso, o principal problema é deste conflito de interesses”, completa.

Tanto da Lei de Processo Administrativo como no Estatuto do Servidor Público de São Paulo há a previsão de impedimentos de participação desta ordem. No entanto, para o ex-governador Geraldo Alckmin, este não parece ser um problema. Nem para a grande imprensa.

 

Fonte: Bia Barbosa – Carta Maior

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