ARTIGO: 2006, o ano em que mais vencemos

Por Gilson Caroni Filho*

 

Foi quando as mãos dos chilenos
estenderam os dedos para a pampa,
e com o coração em uníssono
iria chegar a unidade das suas palavras:
quando tu, povo, te preparavas para cantar
uma velha canção onde se misturavam
as lágrimas, a esperança e as dores:
chegou a mão do verdugo
e empapou de sangue a praça
Pablo Neruda

Impensáveis há pouco mais de uma década, os acontecimentos políticos que fazem fervilhar os países latinos, da América Central à Terra do Fogo, parecem dar razão a Walter Benjamin. O filósofo alemão definiu história como "objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras".De instantes que apontam para novas configurações de poder. De descontinuidades dialéticas que requerem argúcia na análise e ousadia na ação.

Nossos "agoras" parecem deixar para trás uma região marcada por programas de "ajustes estruturais”, destinados a sustentar o pagamento contínuo dos serviços de uma dívida extena impagável. Tributo colonial que tolheu a capacidade dos Estados Nacionais de investir em educação, saúde e infra-estrutura. A longa noite neoliberal, que nos deixou com pouco mais de 100 milhões de miseráveis, parece estar chegando ao fim. E o dia promete amanhecer com novos sujeitos sociais que já ingressaram na cena política de forma decisiva. Seja transformando a identidade étnica em questão nacional, seja articulando os interesses dos trabalhadores rurais e urbanos, a contínua mobilização popular deslegitimou o imaginário que subordinava a prática política ao cálculo contábil. Em processo sem precedentes, o resgate da soberania não se dá em rompantes populistas ou insurgências pontuais, mas no bojo de inequívocos projetos contra-hegemônicos.

A melhor síntese do novo momento histórico do continente foi feita pelo presidente eleito do Equador, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo. Enfatizando a diversidade de posturas entre os principais líderes do campo democrático-popular, Rafael Correa foi incisivo: "o que realmente importa é que há governos progressistas varrendo a América Latina – de leste a oeste e norte a sul -, com diferentes estilos, sim. Você não pode querer que um presidente Chávez fale aos venezuelanos do Caribe no mesmo estilo com que Michelle Bachelet se dirige aos chilenos de Santiago". E arrematou com precisão:: "a América Latina não está vivendo uma época de mudança, mas sim uma mudança de época, com o sepultamento do Consenso de Washington – no qual os latino-americanos não foram sequer chamados a participar -, que resultou num estrondoso fracasso". Não poderia ter sido mais didático e conciso.

De fato, as sociedades cordatas, patrimonialistas e gelatinosas ficaram em algum lugar do passado. A democracia ampliada já não comporta pactos oligárquicos ou transações por alto. Tanto no Brasil como nos demais países da região, respeitadas as especificidades de cada formação política, os movimentos sociais não estão dispostos a chancelar retrocessos ou trocar a inserção direta na esfera decisória por participação vicária. Se a reeleição de Lula é prova cabal de tais determinações, algo semelhante ocorre na Bolívia e no Equador. Quando, em 1º de maio, o presidente Evo Morales decretou a nacionalização dos hidrocarbonetos, cumprindo promessa de campanha, sua decisão foi respaldada por parcela expressiva da população. Um índio aymara restituiu ao país andino o controle sobre recursos naturais que, antes da onda liberalizante, eram explorados pela Yaciamientos Petrolíferos Fiscales de Bolívia( YPFB), empresa que foi retalhada e vendida a cerca de 20 multinacionais de petróleo.A renegociação dos acordos deu ao povo boliviano duas certezas: o acerto da decisão de Morales e o respeito internacional, nunca obtido quando governavam as elites brancas dos departamentos ricos.

Ao falarem em refundar os países via Assembléias Constituintes, em renegociar os contratos para exportação de petróleo, Correa e Morales, na trilha de Chávez, sabem que há poucas alternativas para seus países. Não alterar o arcabouço jurídico-político é manter uma institucionalidade fragilizada pela exclusão. Algo impensável quando a sociedade civil, ampliada, exige radicalização do processo democrático. Na última semana de novembro, mais de 5 mil indígenas marcharam em direção a La Paz para exigir que o Senado, dominado pela oposição, aprovasse um projeto de reforma agrária. São novos atores que vieram para ficar. Não deixarão o palco após molecular acúmulo de capital político.

A história recente do Equador também não deixa dúvidas. Em 2005, Gutierrez, um coronel da reserva eleito em 2002, foi banido do governo, após ter rompido a aliança selada com movimentos indígenas, adotado o receituário neoliberal e se aproximado dos Estados Unidos.

As manifestações populares tiveram início com uma resolução do Poder Executivo que destituiu 27 dos 31 juízes da Corte Suprema de Justiça (CSJ). Os juízes substitutos anularam três processos contra o ex-presidente Abdala Bucaran Ortiz, que pôde retornar ao país após oito anos de exílio.

Foi a gota d água para que milhares de cidadãos, os "foragidos", protagonizassem uma impressionante manifestação espontânea de massa. Começando por Quito, os protestos se espalharam por Guayaquil, Cuenca, Machala e Riombamba. Gutierrez decretou estado de emergência – revogado 24 horas depois do anúncio – e dissolveu a CSJ, mas o ânimo dos opositores não arrefeceu. Autoconvocando-se por celular, internet e pela emissora radiofônica dirigida pelo jornalista Paco Velasco, a sociedade civil equatoriana pôs a nu a crise institucional em que vivia. A perda de credibilidade do presidente deposto era extensiva aos demais poderes. Os partidos tradicionais, o Judiciário e até mesmo a poderosa Confederação das Nacionalidades Indígenas (Conaie) foram deslegitimados pelas multidões nos "oito dias que abalaram os Andes". Correa tem clareza que sua eleição é conseqüência da ação das forças sociais emergentes.

O retorno do sandinismo ao poder é emblemático quanto ao esgotamento de sucessivas gestões neoliberais. Daniel Ortega venceu as eleições presidenciais da Nicarágua no primeiro turno.Os Estados Unidos – que haviam promovido uma intensa campanha contra a candidatura do ex-revolucionário e alertado que a Nicarágua poderia perder a ajuda americana caso o líder sandinista fosse eleito, não obtiveram o êxito habitual. Como tudo indica que, no próximo domingo, a Venezuela( “rojo, rojito”) deverá reeleger Chávez, a constelação de esquerda se configura como opção majoritária na América Latina.

Vai ficando para trás um modelo em que a burguesia aperfeiçoava sua condição de classe subalterna para otimizar alianças em escala interamericana. Em "Imperialismo na América Latina"( Ed.Civilização Brasileira), o sociólogo Otávio Ianni assinalava que " a maneira pela qual se exerce a hegemonia imperialista e o modo pelo qual as distintas classes sociais, no interior das sociedades latino-americanas, incorporam e elaboram essas relações de acomodação e conflito são fundamentais para a compreensão dos sentidos e variações nas políticas exteriores dos países da América Latina.Essas são as bases das políticas exteriores mais ou menos alinhadas ou autônomas". Esse texto foi publicado em 1974. Três décadas depois, o imperialismo vem sofrendo reveses consideráveis. Com os processos eleitorais mais recentes, as bases de apoio à orientação de Washington se reduziram significativamente. O aliado mais expressivo, Uribe, na Colômbia, fica profundamente isolado.

No apagar das luzes de 2006, o ano em que mais vencemos, Lula, Correa, Tabaré Vázquez, Chávez, Michelle Bachelet, Evo Morales, Néstor Kirchner e Daniel Ortega regem o que pode vir a ser uma América integrada em marcos soberanos. Um astrólogo que venha a se debruçar sobre o subcontinente constatará que a conjunção cósmica nos é extremamente favorável. Se as forças reacionárias, tanto interna quanto externamente, não lograrem obter uma reviravolta no cenário político, estaremos dando um importante passo para sair do inferno zodiacal em que vive a região desde os massacres inaugurais de Francisco Pizarro e do aparato colonial português.

Certamente, na espreita, haverá um analista de algibeira a dizer: "Mas os investidores não vêem isso com bons olhos". Ledo engano. Principalmente quando a sentença for proferida por quem se imagina os bons olhos de quem não vê.

 

* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil, Observatório da Imprensa e La Insignia. Este artigo foi originalmente escrito para a Carta Maior.

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