(Rio) O filme Viagem Insólita mostrava uma mini-nave, com um piloto também miniaturizado, viajando pelo corpo humano e fazendo interferências no funcionamento do organismo do hospedeiro. Mas nem nos maiores delírios da Ficção Científica se pensou no que já está acontecendo agora: a construção de máquinas tão pequenas que são invisíveis ao microscópio comum e que podem fazer não só interferências em seres humanos, mas realizar uma série de tarefas antes impensáveis. O nome desta proeza da ciência é nanotecnologia.
O termo foi criado em 1974 e é um nome genérico para varias técnicas que envolvem o uso de partículas que são medidas em nanômetros, unidade que é um bilhão de vezes menor que um metro. A maioria dos objetos produzidos nesta escala é 70 mil vezes menor que a espessura de um fio de cabelo. E eles já estão por aí, em cosméticos, remédios, bolas de tênis, cera para carros, protetores solares e até nos IPods, os tocadores de arquivos de música MP3 produzidos pela empresa norte-americana Apple.
Prós e contras
Os defensores da nanotecnologia destacam as infinitas possibilidades que se abrem para desenvolver novos tratamentos para doenças como câncer, Mal de Alzheimer e diabetes, entre outras, e a hipótese de se desenvolver dispositivos que possam recuperar a visão dos cegos e a audição dos surdos, por exemplo, com o uso de aparelhos que possam funcionar como olhos e ouvidos biônicos. Os entusiastas também destacam que a poluição ambiental pode ser combatida com nanoestruturas que capturem os poluentes e os transformem em substâncias inofensivas. Mas há outros aspectos a serem considerados.
Os estudos para desenvolvimento das nanopartículas são muitos, mas há pouquíssimas pesquisas sobre os impactos destes materiais nos seres humanos e no meio-ambiente. Não se sabe ainda que conseqüências seu uso podem provocar. Já foi observado que cobaias animais apresentaram depósitos de partículas no fígado e é sabido também que estas estruturas podem entrar na cadeia alimentar e, assim, contaminar todos os seres vivos. Nem mesmo os cientistas que conduzem os experimentos estão livres das possíveis seqüelas causadas pelo contato com estas estruturas. “Eles usam máscaras cirúrgicas e luvas comuns, mas estes equipamentos de proteção tradicionais não são eficientes, porque as nanopartículas são tão pequenas que penetram até mesmo na pele”, destaca Marlene Braz, presidente da regional Rio de Janeiro da Sociedade Brasileira de Bioética. “Ao final do expediente, estes profissionais lavam as mãos e vão p ara casa. Esta água, que está contaminada, vai para o esgoto comum”, lembra a pesquisadora.
Cautela X arrojo
Os estudiosos que questionam o uso das nanopartículas destacam que, numa situação como esta, em que se desconhece os riscos, deve ser adotado o chamado Princípio da Precaução. Sua formulação, proposta pela primeira vez durante a conferência internacional Rio 92, determina que “a ausência da certeza científica formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam prever este dano”. Trocando em miúdos: na dúvida, muito cuidado no desenvolvimento e uso da nova tecnologia.
Mas o mercado não está interessado em cuidados. Produtos com técnicas de nanotecnologia já estão nas prateleiras do comércio e os consumidores sequer têm conhecimento disso. O mesmo acontece com os organismos geneticamente modificados, os transgênicos – que também não tiveram, ainda, sua segurança comprovada. A grande batalha dos movimentos contrários aos OGM é pela rotulagem das embalagens, para que o público tenha a possibilidade de escolher o que deseja consumir. Pelo exemplo mais antigo, pode-se esperar uma longa e difícil batalha pelo direito à informação também no que se refere ao uso de nanopartículas nas mercadorias de uso cotidiano.
O remédio sempre tarda
Com tantas possibilidades, seria óbvio que se desenvolvesse nanoestruturas para reverter os danos causados por outras nanopartículas. Mas as empresas não têm interesse em desenvolver antídotos para os produtos que inventam. “O problema é que não há regulamentação nenhuma a este respeito, e é muito difícil que alguma coisa neste sentido seja feita num futuro próximo”, destaca o sociólogo Paulo Roberto Martins, membro da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente – Renanosoma e coordenador do projeto Engajamento Público em Nanotecnologia. “É mais do que isso. Mesmo havendo regulamentação, os empresários só cumprem as normas quando são fiscalizados e multados. O benzeno, por exemplo, é um produto químico altamente tóxico, há normas para seu uso e para proteção dos trabalhadores, mas as empresas não cumprem espontaneamente. Só tomam as medidas de precaução necessárias e obrigatórias quando há fiscalização”, destaca a pesquisadora Arline Arcuri, da Fundacentro, órgão do Ministério do Trabalho e Emprego que atua no tema da saúde do trabalho e meio ambiente.
Não se trabalhará mais como antigamente
Há alguns anos, uma propaganda de sistemas de automação mostrava um rapaz, num supermercado, colocando nos bolsos do casaco várias mercadorias. O homem deixava a loja sem passar pelo caixa, cruzando um portal onde era atingido por uma espécie de flash. Assim que saía pela porta, era abordado por um funcionário, que lhe entregava o recibo das compras. O que o comercial mostrava era uma espécie de scanner que identificava as mercadorias e debitava o valor total da compra diretamente no cartão de crédito do cliente. Isto ainda não existe, mas, em pouco tempo, já será possível colocar nanochips em todas as embalagens encontradas nas prateleiras. Quando isto se tornar financeiramente viável, os operadores de caixa estarão com os dias contados.
A produção industrial também será atingida. Com nanomáquinas capazes de realizar diversos tipos de trabalho, as linhas de produção tradicionais – automatizadas ou não – vão ficar obsoletas. E, a reboque, os operários que nelas trabalham. Até mesmo os serviços de saúde serão impactados por uma revolução profunda nos métodos de diagnóstico e tratamento que poderão deixar sem trabalho milhões de profissionais em todo o mundo.
As possibilidades do uso de nanomáquinas e nanochips são infinitas e seu impacto é difícil até de imaginar. Os serviços bancários, por exemplo, poderão ser feitos de forma 100% automatizada, com o uso de dispositivos nano colocados nas cédulas, moedas, cartões e até boletos de cobrança que dispensem qualquer tipo de trabalho humano. No Brasil, os hoje pouco mais de 400 mil bancários em atividade poderão ficar desempregados num período muito curto.
O grande problema disso tudo é que não será possível absorver toda esta mão de obra que ficará ociosa com o uso da nanotecnologia. A automação industrial que aconteceu na década de 80 foi responsável pela eliminação de muitos postos de trabalho, mas o que a nanotecnologia pode trazer é ainda mais catastrófico. A operação de dispositivos em escala nano requer profissionais tão especializados que é impossível promover a capacitação de um operário para que ele seja aproveitado dentro da empresa em que trabalha.
Pesadelo
Qualquer atividade industrial produz resíduos e a nanotecnologia não é diferente. Mas um lixo que não pode ser visto ao microscópio ótico é tão difícil de detectar que é praticamente impossível realizar o correto manejo dos detritos e a prevenção dos riscos de contaminação humana e ambiental. E ainda há uma ameaça ainda maior.
Os cientistas trabalham num modelo de nanoestruturas auto-replicáveis, isto é, capazes de produzir cópias de si mesmas. Isto seria útil para potencializar a capacidade de trabalho das partículas, já que não seria necessário, por exemplo, injetar uma dose alta de medicamento num paciente, mas apenas um pequeno número de nanomáquinas que se reproduziriam na quantidade necessária. O problema todo é o controle desta multiplicação.
A grande ameaça é chamada de gosma cinza, ou, no Inglês, grey goo, uma possibilidade ainda remota. Seria a proliferação destes nanorobôs autoreplicantes, que tomariam conta da Terra, alimentando-se de tudo o que encontrassem e usando a energia solar como combustível. Os defensores da nanotecnologia dizem que bastaria que estas máquinas tivessem um limite para a autoreplicação para impedir sua multiplicação indiscriminada, mas, como bem aprendemos com a informática, às vezes as coisas não funcionam como esperado.
O cenário é de ficção científica. Mas tudo isso já está acontecendo bem diante dos nossos olhos. Mesmo que seja impossível enxergar.
Para saber mais
Livros:
– Nanotecnologia: os Riscos da Tecnologia do Futuro
Produzido pelo Grupo ETC, uma organização internacional, com sede em Ottawa, Canadá. Ed. L&PM
Disponível nas livrarias virtuais Submarino e Saraiva Online
– Nanotecnologia, sociedade e meio ambiente
Organizado pelo pesquisador Paulo Roberto Martins a partir das palestras e do material apresentado no seminário do mesmo nome, já realizado em várias cidades do país.
Disponível no site da Livraria Cultura.
Vídeo:
“Nanotecnologia: O futuro é agora”
Produzido pela Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Meio Ambiente – Renanosoma. Direção de Alexandre Quaresma.
Veja, em sete partes.
Reportagem:
Revista Galileu (Ed. Globo) “Nanotecnologia: ela está no meio de nós” – edição de Setembro de 2007
Fonte: Feeb RJ/ES