David Wessel, The Wall Street Journal
O Setembro Negro, o maior choque financeiro desde a Grande Depressão, está levando dois republicanos, o secretário do Tesouro, Henry Paulson, e o presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, a realizar a maior intervenção do governo na economia desde os anos 30, numa tentativa de impedir a devastação econômica daquela crise.
Abandonando a estratégia de um resgate por vez usada nos últimos meses, o governo americano mudou subitamente para um amplo ataque ao que Paulson chama de “raiz dos problemas de nosso sistema financeiro”: os créditos podres nos balanços dos bancos do país.
Foi-se a fé, compartilhada pela liderança americana com variados graus de entusiasmo, de que o melhor caminho para a prosperidade é liberar os mercados financeiros para alocar capital, assumir riscos, desfrutar de lucros e absorver prejuízos. Sumiu a esperança de que os mercados se corrigem quando exageram.
Também foi destruída a idéia de que o papel do governo é ficar de fora, limitando-se a proteger consumidores e pequenos investidores, definindo as regras do jogo e interferindo – apenas raramente – para proteger a economia de choques como a quebra das bolsas de 1987 ou o colapso do fundo de hedge Long-Term Capital Management. Esses dois episódios envolveram a ação do governo americano para acalmar os mercados e inundá-los de dinheiro. Em contraste com a situação atual, em nenhuma das vezes os Estados Unidos usaram quantias significativas de dinheiro do contribuinte ou qualquer coisa que se aproximasse da estatização de uma grande firma.
Há pouco mais de um ano, Paulson, entre outros, argumentava que as regulamentações onerosas estavam aleijando o setor financeiro americano diante da concorrência internacional mais acirrada. Esse discurso foi silenciado.
“Nos últimos 20 anos as pessoas estavam, na verdade, expressando a idéia de que o governo deveria tirar as mãos” do mercado, diz Richard Sylla, um historiador financeiro da Universidade de Nova York. “Tínhamos essa crença do livre mercado: ‘O governo não é uma solução, o governo é o problema’, de Reagan. Agora as pessoas estão dizendo: ‘O mercado é o problema. O governo é a solução.'”
A Depressão produziu, entre outras coisas, novas regras abrangentes para governar o sistema financeiro – como a Lei Glass Steagal, de 1933, que separou bancos comerciais e de investimento até ser retirada em 1999. O resultado inevitável da atual crise, assim que termine, será mais controle governamental do sistema financeiro. As únicas questões agora são que dureza terá a nova fiscalização, que forma tomará e quanto durará até que as restrições sejam relaxadas ou dribladas.
Em março, o Fed rompeu uma tradição de meio século em que só emprestava dinheiro a bancos cujos depósitos eram segurados pelo governo. Declarando que as circunstâncias eram “inusitadas e exigentes”, como exigia um estatuto pouco usado, ele emprestou ao banco de investimento Bear Stearns e chegou a arriscar US$ 29 bilhões em dinheiro de contribuintes para induzir o J.P. Morgan Chase a comprar o Bear Stearns. Parecia uma grande transação na época.
Mas nas últimas duas semanas o governo americano, mantenedor da chama do livre mercado e da empresa privada, fez muito mais:
– Nacionalizou os dois motores da indústria de crédito imobiliário dos EUA, a Fannie Mae e a Freddie Mac, e inundou o mercado hipotecário com recursos fiscais para mantê-lo funcionando;
– Elaborou uma transação para assumir o controle da maior seguradora do país, a American International Group Inc., demitiu seu diretor-presidente e iniciou um plano de vendê-la em partes;
– Ofereceu seguro governamental não só aos depósitos de conta corrente, mas também a US$ 3,4 trilhões em fundos de curto prazo por um ano;
– Proibiu uma prática que está no âmago das negociações com ações, a venda a descoberto, na qual os investidores tentam lucrar com a queda das cotações. A proibição se aplica a 799 ações do setor financeiro;
– Permitiu ou encorajou a quebra ou venda de dois dos quatro bancos de investimento independentes remanescentes, Lehman Brothers e Merrill Lynch;
– Solicitou ao Congresso que concorde, esta semana, em deixar na conta dos contribuintes centenas de bilhões de dólares de ativos ilíquidos de instituições financeiras, de modo que estas possam aumentar o capital e retomar a concessão de crédito.
Uma semana atrás Paulson parecia ter estabelecido um limite aos resgates do governo, rejeitando o pedido da Lehman de um socorro semelhante ao do Bear Stearns e permitindo que o banco de investimento quebrasse. “O compromisso nacional com o livre mercado durou um dia”, ironizou Barney Frank, o democrata de Massachusetts que preside o Comitê de Serviços Financeiros da Câmara dos Deputados, na semana passada. Esse dia foi segunda, 15 de setembro. Na véspera, o governo havia rejeitado o pedido de ajuda do Lehman. No dia seguinte, assumiu o controle da AIG.
A mudança de estratégia reflete a constatação por Paulson e Bernanke de que a crise financeira estava se intensificando nos últimos dias, ameaçando toda a economia. A confiança se deteriorou acentuadamente. A desconfiança se disseminou. Os mercados de crédito não estavam funcionando e a oferta de empréstimo secou. Negócios corriqueiros não estavam sendo feitos. Os dois bancos de investimento independentes que restavam estavam sob forte pressão. O pânico estava chegando ao americano comum, que começava a tirar dinheiro de fundos de curto prazo.
“A convulsão que tivemos nas últimas duas semanas? Não acho que haja nada como ela na história. Quero verificar a semana de 1933, quando todos os bancos foram fechados”, diz Robert Aliber, um historiador econômico da Universidade de Chicago que atualizou um livro clássico de 1978 escrito por Charles Kindleberger, “Manias, Pânicos e Crashes”.
Mas há uma grande diferença entre o passado e o agora. As autoridades agiram mais rápido desta vez. “Nos anos 30, a intervenção que importava ocorreu depois do desastre”, diz Sylla. “Agora as intervenções são feitas para impedir o desastre que tivemos nos anos 30.” A única surpresa agradável dos últimos meses é que a economia americana não se saiu pior.
É cedo demais para dizer se Bernanke e Paulson tomaram a decisão certa e vão dar um fim à crise, apesar da reação eufórica dos mercados acionários mundiais na sexta-feira. Se o medo diminuir, a discussão vai se voltar à elaboração de novas regras para um sistema financeiro que mudou mais nos últimos seis meses que nos dez anos anteriores. O governo socorreu instituições financeiras – e particularmente seus credores – e os contribuintes vão ficar com a conta de muitas das decisões erradas dessas instituições. Isso pode encorajar o mau comportamento no futuro. Por isso, o governo precisa elaborar um nova regulamentação para reduzir esses incentivos.
Alguns especialistas recorrem à história e prevêem que o governo vai exagerar no remédio regulatório. Bolhas geralmente começam com produtos criados para driblar regulamentações, diz Stephen Quinn, um historiador econômico da Universidade Cristã do Texas. “Uma regulamentação inteligente olha para o futuro para impedir que a próxima idéia (…) para driblar as regras resulte numa bolha sem coibir o fluxo de novas idéias. A regulamentação burra olha para o passado. Adivinhe que tipo de regulamentação a maioria das crises produz.”
Mas Frederic Mishkin, que saiu recentemente do Fed para voltar a lecionar na faculdade de administração da Universidade Columbia, tem esperança com base na resolução da crise das poupanças, no fim da década de 80. “No começo as medidas foram desastrosas”, diz. Autoridades e políticos demoraram a reagir, permitindo que as instituições de poupança fizessem mais e mais empréstimos de alto risco, em vez de as fechar. Aí, em 1989, o governo de George Bush engoliu em seco, fechou as instituições de poupança, pagou os depositantes e vendeu os ativos das firmas a preços de liquidação. O custo aos contribuintes foi de US$ 124 bilhões.
O Congresso e o presidente agiram para reduzir as chances de uma repetição, aprovando uma lei de 1991 que, entre outras coisas, aumentou a quantidade mínima de capital que os bancos tinham de manter. Em conseqüência disso, diz Mishkin, os grandes bancos entraram na crise atual muito mais capitalizados do que no início dos anos 90. “Esse é um motivo pelo qual esta crise não levou a um desastre completo. Ela deixou os bancos numa posição mais sólida, de modo que eles têm um colchão maior quando erram”, diz. O outro motivo, diz, é a rápida resposta do Fed à crise atual.
O problema: a lei de 1991 não se aplicava aos bancos de investimento, firmas hipotecárias e mesmo seguradoras que estão no coração da crise atual. Isso deixa a elaboração de novas regras para essas instituições no topo da agenda para o novo presidente e o próximo Congresso.