“O rearranjo produtivo afetou a esfera do trabalho. Essa hegemonia do capital financeiro não significa a perda da importância do trabalho, mas sim a corrosão do trabalho em todas as esferas e em todas as instâncias”. A frase foi dita por Ricardo Antunes, professor de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, no terceiro dia do “IV Congresso Internacional de Ciências do Trabalho, Meio Ambiente, Direito e Saúde: acidentes, adoecimentos e sofrimentos do mundo do trabalho”, em 24 de agosto, realizado em São Paulo.
Essa corrosão do trabalho é impulsionada globalmente e está se intensificando no Brasil com um discurso que defende a flexibilização trabalhista e o avanço do neoliberalismo, que começou a ser implantado no país na década de 1990. “Aqui as coisas chegam de forma tardia e mais trágica”, sentenciou Antunes.
No mundo, a precarização do trabalho também avança. “Empresas globais na China levam ao limite a exploração do trabalho”, relata o professor de sociologia. São casos, por exemplo, de suicídios em empresa global de terceirização, que fabrica produtos eletrônicos. Já na Índia, ele presenciou uma força monumental de pessoas dispostas a qualquer trabalho. No Japão, estudos mostram o trabalho precarizado de brasileiros que moram no país.
“Os fluxos migratórios em direção ao trabalho são um laboratório da exploração do trabalho em escala global”, explica Ricardo Antunes. “Imigrantes que eram bem recebidos para fazer trabalho sujo, com salários inferiores e condições adversas, passam a ser rechaçados”, completou.
Na avaliação do professor, onde há luta e resistência os processos de precarização são menores. Logo, é preciso ampliá-la. “Se não houver uma resistência forte, vamos ver um processo de devastação, com contratos uberizados, pejotizados. Seremos super explorados. Teremos o frila fixo, usado no jornalismo, que é o trabalhador sem direito, em todos os lugares”, alertou Antunes.
O futuro do trabalho também foi analisado, durante o debate da manhã no evento, pelo professor e pesquisador do Instituto de Economia da Unicamp, José Dari Krein. Ele explicou que os direitos se contrapõem às características que são inerentes ao trabalho no capitalismo para que as pessoas possam viver com o mínimo de dignidade.
Já o progresso técnico leva aos ganhos de produtividade. “Com a presença forte do movimento operário desde o final do século XIX, parte de ganhos de produtividade é repassada aos trabalhadores. Isso muda após os anos 1970. Hoje há uma situação de instabilidade. Tem que cumprir meta, ser extremamente qualificado e concorrer em um sistema brutal ou trabalhar em trabalhos extremamente precarizados. Você cria desemprego estrutural e diminui o índice de proteção social. Isso possibilita maior liberdade de transferência do capital financeiro”, avaliou Krein.
Efeitos no Brasil
Na avaliação do professor do Instituto de Economia, os anos que antecederam 2014 no Brasil foram um período contraditório, com melhoras de alguns indicadores do mercado de trabalho por um lado, mas também com flexibilização por outro. A partir de 2014, a situação piora e há um crescimento do desemprego com queda acentuada da renda e piora dos indicadores do mercado de trabalho.
“Nós temos do ponto de vista do cenário da renda, do desemprego, uma piora, e uma retomada de uma pauta velha dos anos 1990 com mitos e teses sem comprovação empírica, com uma agenda de flexibilização do mercado de trabalho para os empregadores poderem contratar como quiserem”, alerta José Dari Krein. Um desses mitos afirma que o salário mínimo não pode ter aumento real que prejudica a economia.
A desconstrução dos direitos pode ocorrer a partir de uma reforma da Previdência que acabe com a indexação dos benefícios ao salário mínimo e coloque idades para aposentadoria de 65 ou 70 anos. Já o discurso da reforma trabalhista defende uma “modernização figurativa” em que, na verdade, vamos competir com os países mais pobres, que oferecem as piores condições de trabalho e salários do mundo.
Em Bangladesh, por exemplo, o salário em confecções é de 38 dólares. “Querem diminuir o custo da produção em cima do trabalhador”, apontou o professor do Instituto de Economia. Assim se estabelecem como projetos prioritários a terceirização total, a prevalência do negociado sobre o legislado e o programa de proteção ao emprego como permanente.
Para ele, a discussão sobre o futuro do trabalho está inserida em um processo que produz uma sociedade mais polarizada, com uma flexibilização e insegurança que submete a todos, desde os trabalhadores mais qualificados aos mais precarizados. É a ausência de proteção social. “Quem é o trabalhador do Uber? É a total desregulamentação como regra. Ele é regido por um site”, exemplificou Krein.
“No tema da terceirização, uma das dimensões dessa prática é o adoecimento. As empresas também querem terceirizar o passivo. É mais fácil terceirizar áreas que são potencialmente causadoras de doenças dos trabalhos. Também se percebe que as taxas de desemprego são maiores entre as mulheres e os jovens. As mulheres são empurradas para os empregos mais precários e para a informalidade. Existe uma necessidade de enfraquecer as entidades sindicais. O negociado sobre o legislado só se viabiliza com sindicatos frágeis”, completou a coordenadora da mesa da manhã do congresso, a economista Marilane Teixeira.
As cadeias globais de valor
Em sua exposição, Marcia Leite, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, mostrou que a melhoria do desempenho econômico das empresas significa aumento de trabalhos precários nos países que estão nas extremidades das cadeias globais. O que se busca com os processos de fusão e aquisição é a expansão do lucro e não há uma melhora das condições de trabalho.
Vive-se um momento em que as empresas brasileiras são vendidas por preço baixo, e elas passam a se inserir em uma cadeia global de valor. “Esse processo internacional vem por ondas de terceirização. Hoje praticamente não existe produção de confecção em países desenvolvidos. Isso faz parte desse arranjo produtivo global. Hoje as marcas do setor eletrônico não produzem os produtos. Há separação do trabalho como concepção que se mantem com a marca e a produção. O produto da Apple é produzido pela Foxconn [principalmente na China]. As condições de trabalho permitem vender o produto a um preço mais baixo. Vemos também a criação dos call centers que fazem todo trabalho de venda das empresas”, explicou Marcia Leite.
Vale ressaltar que a empresa que se insere a uma cadeia global de valor no Brasil tem que ater à legislação do país, então, na avaliação da pesquisadora, o capital financeiro está interessado nesse processo de flexibilização. Outro aspecto importante é que existe diferença de poder entre as empresas que estão na cadeia global de valor. Há pressão para reduzir custos do trabalho, especialmente, nas que estão nas extremidades da cadeia.
A cadeia se monta a partir da marca, não da manufatura. Ocorre a divisão entre a concepção, e a produção que é terceirizada. “É o que acontece com eletroeletrônicos. A contratação de mulheres, especialmente, em trabalho manual e com peças muito pequenas, é intensa. Há mistura de princípios tayloristas e de flexibilização como o Just in time [toyotista]. O que vai gerar diversos problemas de saúde. O trabalho na produção eletrônica é um dos mais mal remunerados da indústria”, apontou a professora da Unicamp. Os trabalhadores são submetidos a horas extras compulsórias. No Brasil, esse trabalho está situado na região de Campinas/SP e na zona franca de Manaus/AM.
Outro exemplo em que a marca não produz é a indústria de confecção. As produções são terceirizadas para países da América Latina, como o Brasil, da África e da Ásia. O termo “fast fashion” caracteriza a produção super rápida da roupa, que é propagada até a ponta precária da cadeia – o trabalho em domicílio ou em pequenas oficinas. As peças já chegam cortadas e em partes, o que mostra que o princípio da taylorização permanece presente. Em São Paulo/SP, há os casos dos trabalhadores bolivianos que vivem situações precarizadas, como o trabalho análogo à escravidão.
Durante a mesa “O futuro do trabalho diante da precarização atual e migrações recentes”, que foi discutida na manhã de 24 de agosto, a cientista social Ana Yara Paulino, do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), apresentou o Anuário da Saúde do Trabalhador, produzido pela instituição. Ela também deixou o seu alerta ao público presente ao congresso: “Temos que ter cuidado com a criminalização dos movimentos sociais. Discutir condições de trabalho é discutir coisas que são caras ao capital”.
“A meta não é o máximo. É o mínimo. Isso causa adoecimento. É preciso recuperar os sentidos de solidariedade. Adoramos os que estão longe, falamos pelo celular, computador, mas não suportamos os que estão perto. Qual é o futuro? O capital destruiu a social democracia e o socialismo real. Nos restou o capital devastador. Temos que lutar pela regulação do trabalho porque isso é o aqui e agora, mas temos que pensar em um outro modo de vida e produção que não pode ser o da destruição do tempo, do trabalho, da etnia. O futuro do trabalho nos obriga a pensar que sociedade nós queremos”, finalizou Ricardo Antunes.