Saul Leblon
Agência Carta Maior
A expressão ‘siga o dinheiro’, comum em filmes policiais, ilustra a percepção correta, adiantada por Adam Smith, de que a moeda desenha estradas invisíveis na sociedade.
Rastreando-as é possível desvendar aquilo que não se oferece imediatamente à vista.
Pelos caminhos do dinheiro circulam desde carregamentos lícitos, como safras, a armamentos, sonegações fiscais, drogas, favores políticos e outras miunças.
Os bancos são o entreposto de serviços desse trânsito.
Ademais de concederem abrigo seguro e rentável ao fluxo -eventualmente lavá-lo das marcas do caminho – tem o poder de gerar e direcionar novos volumes de tráfego, em emissões de crédito desdobradas da carga ociosa em seus depósitos.
Esse notável replicador conecta-se a outros entroncamentos por onde o dinheiro graúdo viaja em primeiro classe, engordando sua existência (às vezes acometida de emagrecimentos súbitos causados pela gula tóxica).
O conjunto forma o que se chama de sistema financeiro.
Pelo calibre dos interesses que reúne, a abrangência da ramificação e o poder de influencia que exerce , constitui uma espécie de governo invisível da sociedade.
O governo invisível não quer a reeleição de Dilma.
Pesquisa feita com duas dezenas de expressivos dirigentes dessa constelação, ao abrigo do anonimato, como manda o ofício, constata que o ‘Setor financeiro quer mudança no Planalto’, informa o jornal Valor Econômico desta 3ª feira.
As relações entre o governo invisível e o visível (qualquer que seja ele) desenvolvem-se em um amplo gradiente.
Oscilam da extrema cordialidade a variados graus de inevitáveis fricções, em se tratando de duas ordens distintas se representação do mosaico social.
O governo invisível acha que o governo Dilma atrapalha o seu sistema viário – ainda que longe de comprometer o valor corrigido e real da frota, como atestam as taxas de juros do país, entre as três mais altas do mundo.
Prefere-se, indica o Valor, que o Estado seja gerido por centuriões de integral confiança, a exemplo daqueles que assessoram Aécio Neves, como o ex-presidente do BC tucano, Armínio Fraga; ou o economista Gianetti Fonseca, ligado a Marina Silva e Campos.
Em síntese, gente que aplique como se deve a regra do tripé, a saber:
inflação na meta (leia-se, juros altos); câmbio livre (leia-se, nenhum controle sobre o fluxo volátil de capitais) e equilíbrio fiscal (leia-se, arrocho para garantir os juros dos rentistas).
A esse conjunto, o naipe liberal credita a chave da ‘estabilidade econômica’.
A quebra especulativa do sistema financeiro mundial sugere que o sagrado tridente com o qual o governo invisível pretende tanger o visível não entrega necessariamente o que promete.
O problema da instabilidade do capitalismo mostrou-se mais uma vez inerente ao próprio sucesso do sistema que encoraja ditos agentes racionais e alçarem voos cada vez mais cego, altos e inseguros.
A ausência de regulação disciplinadora levou-os na crise recente de volta às correntezas de vento exploradas originalmente pelo charlatão italiano Charles Ponzi.
Imigrante pobre nos EUA dos anos 20, Ponzi descobriu que podia fazer uma espécie de arbitragem com a diferença de preços dos selos, mais caros nos EUA que na Europa.
Nasceria assim o bisavô do atual carry trade (aplicação financeira que consiste em tomar dinheiro a uma taxa de juros em um país e aplicá-lo em outro, de taxas maiores).
Ponzi captava dinheiro nos EUA para comprar selos na Europa e revendê-los no mercado americano.
A diferença era embolsada pelo investidor com a promessa de rendimentos trimestrais que oscilavam de 50% a até 100%.
O negócio floresceu rapidamente gerando filas na porta de Ponzi, que contratou dezenas de agentes captadores movidos promessas de bônus milionários.
A roda da bicicleta passou a girar como se imagina.
De uma captação inicial da ordem de US$ 6 mil, em fevereiro de 1920, saltaria para a faixa dos US$ 400 mil em maio.
Dois meses depois transitava na casa dos seis zeros.
Ponzi descobriu que ganharia mais sem desperdiçar recursos com os selos.
Abaixo os intermediários: pagava a fila de ontem com os recursos captados hoje.
No final de 1920, o negócio foi desmascarado, levou milhares à ruína e Ponzi à cadeia, como charlatão financeiro.
Poucos se deram conta de que estava ali também um filho típico daqueles tempos de sucesso inebriante dos mercados financeiros sem lei.
O sentido ficou mais claro nove anos mais tarde quando a Bolsa de Nova Iorque quebrou deflagrando uma crise mundial da qual o capitalismo só se livrou com a Segunda Guerra.
A memória seletiva dos rapazes do mercado e dos vulgarizadores da superior eficiência dos livres mercados ajuda a entender como depois quase um século, a bicicleta girou em falso novamente, dando um tombo global no mercado em 2007/2008.
Sucessores avulsos de Ponzi, como Bernard Maddoff, estavam presentes. Mas, sobretudo, uma miríade institucional.
O que são, afinal, os derivativos a não ser fundos indexados a outros fundos, cujo lastro efetivo repousa sobre material de qualidade tão sofrível quanto os selos- fantasia de Ponzi? Ou o recheio das sub-primes do boom imobiliário norte-americano?
A banca brasileira – e seus porta-interesses na mídia e na política – considera que a intervenção disciplinadora do Estado nos mercados compromete a eficiência e corrói a estabilidade do sistema.
Prefere Dilma fora e a lubrificação do país por gente do ramo.
A Depressão norte-americana de 1929 esfarelou a indústria e despejou metade da mão de obra na rua.
Seis anos após o colapso de 2008 da ordem neoliberal, a OIT informa que existe um estoque de 202 milhões de desempregados no mundo (62 milhões adicionados pela crise); 839 milhões de trabalhadores vivem com menos de US$ 2/dia e 48% do emprego atual é precário.
Vai piorar: espera-se um acréscimo de mais 13 milhões de demitidos à legião disponível até 2018.
O Brasil criou cerca de 14 milhões de empregos desde o início da crise mundial (sendo 1,1 milhão no ano passado, saldo carimbado como um fracasso pelo jornalismo isento).
Os bancos preferem o modelo de estabilidade espanhol: 26% de taxa de desemprego.
Jornais, a exemplo da Folha, já cogitaram seriamente Ruanda (45% de taxa de pobreza) como referência de país ‘top reformer’ – um dos mais receptivos a mudanças amigáveis ao ambiente dos negócios.
A saúde dos mercados e a deriva da sociedade, como se vê, não soam contraditórias a certa concepção de estabilidade.
Antes, exprimem uma tendência mais geral de um capitalismo que deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva, elevado desemprego e especulação solta na esfera financeira.
Ademais dos candidatos sabidos, a disputa de outubro coloca em confronto essas duas concepções de governo: a visível e a invisível.