Início de maio, meio de semana, começa a circular um boato sobre pesquisa do instituto Datafolha que indicaria queda nas intenções de voto da presidenta Dilma Rousseff. A pesquisa nem havia começado – e depois acabaria indicando estabilidade em vez de queda -, mas bastou para o principal índice da Bolsa de Valores de São Paulo acelerar.
Assim tem sido nos últimos meses. O mercado financeiro abriu as apostas, marcadamente em nomes identificados com a oposição e em propostas no rumo da flexibilização de regras. A enxurrada de notícias e informações, não raro, atropela análises mais ponderadas. Um momento semelhante ao de 2002, quando o chamado “risco Lula” expunha o então candidato como uma ameaça para o equilíbrio econômico.
Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a comparação é clara. “Os mercados tendem a exagerar no movimento de preço. Havia um clima de pessimismo, como está sendo colocado agora. O Lula estava sendo ameaçado de ser deposto três meses depois (de eleito). Claramente, o clima era esse”, recorda. A explicação é relativamente simples: “Os mercados são insanos. Não têm fundamentos, são essencialmente especulativos.”
Tanto Belluzzo como o professor de Ética e Filosofia Política Renato Janine Ribeiro, da Universidade de São Paulo (USP), referem-se ao termo “antropoformização” para se referir ao mercado, que no noticiário surge como um ser vivo, demonstrando reações emocionais.
“Por um lado, o mercado é apresentado como um grande agente de racionalidade. Mas é curioso que existe esse conjunto de metáforas que apresenta o mercado como nervoso”, diz Janine, para quem as duas leituras possíveis no atual discurso econômico (governista e oposicionista) contêm elementos ideológicos.
Estratégia
Nervoso, mas que sabe o que quer. “O investidor é avesso a mudanças bruscas”, diz o analista Raphael Figueiredo, da Clear Corretora. Há uma tentativa de impor no preço uma expectativa futura. Essa decisão tem de ser rápida, emocional. O impacto vai ganhando cada vez mais peso quando se enxerga naquele candidato, ou grupo de candidatos, um cenário de menor tranquilidade. Ele tenta proteger sua estratégia e coloca no preço essa expectativa”, acrescenta, distinguindo visões de curto e longo prazo, resultando em conflito que leva ao movimento especulativo.
Algo que pode partir do nada. Em 13 de maio, lembra Figueiredo, bastou uma declaração do presidente do PT, Rui Falcão, sobre controle de capitais, para “assustar” o mercado. “Um rumor vai sendo criado de forma muito intensa. Em poucos minutos, o mercado tende a embutir no preço.”
Também para o analista, o clima atual lembra 2002, quando se dizia que, vencendo Lula, haveria descontrole de gastos públicos e calote no pagamento de juros da dívida, entre outros perigos. “Existia o risco Lula, o mercado era avesso ao Lula e o mercado cresceu. No histórico recente, é um governo que tem intervindo mais na economia.”
A questão é se a economia, ou o país, vai tão mal assim. Os consensos, diz Belluzzo, trazem avaliações nem sempre corretas. E observadores detectam que o noticiário dá ênfase, principalmente, a temas de interesse do mercado financeiro.
O assunto chamou, inclusive, a atenção de uma jornalista habituada à cobertura econômica, Paula Puliti, que no ano passado publicou um livro a respeito do assunto (O Juro da Notícia – Jornalismo econômico pautado pelo capital financeiro), resultado de uma tese de doutorado orientada, na USP, pelo professor Bernardo Kucinski. Segundo ela descreve, nos últimos anos, o noticiário tem sido dominado pelo chamado discurso de pensamento único.
Retórica
“No Brasil, a retórica neoliberal conquistou os jornais em parte por influência da imprensa estrangeira, mas em escala muito maior por conta do discurso estrategicamente preparado e veiculado por banqueiros, executivos de empresas, economistas e acadêmicos alinhados com a forma neoliberal de ver o mundo, que, para eles, é a única capaz de promover crescimento econômico sustentável e distribuição da renda, colocando fim às desigualdades sociais de forma científica e apolítica”, escreve a jornalista.
Essa “financeirização” do noticiário também teve como consequência afastar o leitor comum, que não via relação das notícias com seus cotidianos.
Em seu trabalho, a pesquisadora fez, por exemplo, uma análise tendo como amostra um período de 14 anos (1989-2002), mostrando a ênfase na “financeirização” a partir de 1990: notícias sobre reformas, privatizações, impostos, gastos públicos, arrecadação, câmbios, juros estiveram sempre em evidência. Temas sociais – como investimentos em saneamento básico, transportes públicos e habitação – nunca foram destaque. Uma das conclusões: “Ideias e opiniões que não condiziam com o pensamento neoliberal praticamente não apareceram nas notícias econômicas”.
“É um fenômeno internacional”, afirma o professor Antônio Corrêa de Lacerda, do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, um dos entrevistados no livro. “À medida que houve a globalização, há uma tendência de as finanças influenciarem as próprias economias, governos, mídia. No caso brasileiro, tenho a impressão de que isso é mais forte”, diz Lacerda, observando que os bancos, em particular, têm “departamentos bem estruturados que fornecem análises para a mídia, de excelente qualidade e de fácil digestão para o jornalista”.
O resultado é que se vê uma visão “meio consensual”, que às vezes exclui o contraponto, representado pelo setor produtivo e pelos trabalhadores. “O mercado financeiro é, por natureza, especulativo. Num ano eleitoral, isso se torna mais forte. A melhor maneira seria ter fontes qualificadas de outros segmentos da sociedade. Você teria um debate mais qualificado.”
Lacerda diz sempre recomendar a entidades empresariais que seus departamentos econômicos tenham atuação mais incisiva na mídia. Isso também vale para as entidades de trabalhadores. Ele observa que, da forma como é apresentado, o noticiário pode transmitir a impressão de que a economia se mostra pior do que realmente está. “Na verdade, não há um balanceamento entre os vários aspectos que deveriam ser levados em conta, como desemprego baixo, aumento da renda, o fato de ser um país dos que mais recebem investimentos estrangeiros no setor produtivo. Você vê muito uso do off (declarações sem identificação da fonte) como instrumento. Alguém disse que o mercado pensa assim e aquilo vira uma verdade.”
‘Ronronando’
Professor da PUC e da Universidade Metodista de São Paulo, José Salvador Faro identifica uma “tendência ideológica” dos noticiários, mas ressalva que sua observação, como leitor, não é linear. “Percebo que há cadernos de economia com boas matérias de política econômica, como no Estado de S. Paulo, que transcende um pouco a posição ideológica do Estadão. O Valor traz excelentes matérias de análise”, comenta. Mas o ponto de vista de que o mercado deve ser o regulador da economia não causa dúvida de que aparenta um discurso único. “A orientação editorial é pró-mercado, e há um discurso econômico muito hermético, um noticiário para iniciados.”
A questão se estende ao próprio ensino, acredita Faro. “As escolas de jornalismo não ensinam. Grande parte do leitorado fica fora da compreensão dessas questões.” O problema se estenderia à formação de economistas, acrescenta o professor. Ele cita artigo publicado no Valor Econômico que chamava a atenção justamente para o fato de as faculdades, em determinado momento, terem abandonado o estudo de algumas linhas de pensamento, menos monetaristas. “Se todo mundo fala a mesma coisa, os jornais acabam sendo homogêneos”, constata.
Porta-voz do pensamento liberal, a revista britânica The Economist, que algumas vezes tentou “derrubar” o ministro da Fazenda, Guido Mantega, publicou recentemente um texto elogioso aos principais pré-candidatos de oposição, Aécio Neves e Eduardo Campos. “Empresários e banqueiros saem ronronando ao encontro com os dois homens”, diz a publicação, que não deixa de citar resultados importantes do governo Dilma Rousseff, como as baixas taxas de desemprego e o crescimento da renda.
O também britânico Financial Times reforçou o coro das reformas, ao sustentar que as preocupações generalizadas no país estão começando a empurrar o debate “para uma direção amigável ao mercado”, o que, para o jornalão, só pode ser “uma coisa boa”. Por sua vez, analistas brasileiros já vêm batendo insistentemente na tecla dos “ajustes” e das “medidas impopulares” – identificadas com Aécio, o que provocou abalos na aparente união entre as candidaturas antigoverno. Tanto Campos como a vice Marina já procuraram demarcar territórios em relação aos tucanos.
Com essa ênfase na cobertura financeira e a proximidade das eleições, terá o chamado mercado escolhido seus candidatos? A lógica indica que sim. “O mercado não dá preferência a partidos, mas a um ambiente de mais estabilidade. Corre para o lado político que transmita esse ambiente. Não vai vestir uma bandeira”, diz o analista Raphael Figueiredo. “O modelo de negócio do investidor embute entre suas variáveis o fator risco. E tem o fator risco político, que não é mensurável.”
Renato Janine vê o debate eleitoral em aberto, à medida que ninguém ainda definiu as “mudanças”, demanda que aparece nas pesquisas. “Ao menos a discussão moralista não está surgindo. Prefiro uma discussão sobre economia a uma discussão sobre aborto.” Mas ainda há problemas no debate político, avalia. “Eles ficam brigando pelo terço que já está convencido. Parece que as pessoas esqueceram que quem decide a eleição são os indecisos.”
Para o professor Lacerda, está se formando certo consenso pró-oposição. “Mas uma coisa é o que o mercado pensa e outra o que a sociedade pensa.”
Belluzzo não vê “importância” nos candidatos do ponto de vista do mercado. “Eles já foram capturados”, afirma. Com isso, ele diz que o debate vai sendo dominado por uma visão restrita, considerando apenas fatores como inflação, superávit fiscal, câmbio. Dentro disso, análises que defendem que mesmo uma alta da taxa de desemprego podem valer a pena.
“Criam um clima de catástrofe. O debate econômico hoje está muito centrado nessa tentativa de apresentar as coisas piores do que estão. Isso já faz parte da luta eleitoral mesmo. Eles (mercado) exigem uma fidelidade canina.” E vão sempre lembrar de quem aparentemente se opõe. “Eles nunca aprendem nada, mas também não esquecem de nada.”