Carta Maior
Katarina Peixoto
BELÉM – Um debate organizado pela Fundação Perseu Abramo, do PT, reuniu na tarde desta quinta-feira (29) lideranças femininas do partido na Casa de Cuba, lotando o espaço em clima de euforia. Entre os presentes, a ex-candidata a presidente da França, a dirigente do PS francês Ségolène Royal ecoou as palavras da senadora petista Fatima Cleide: “Nós somos metade do país e mães da outra metade”. “C’est genial”, disse, sorrindo, Ségolène. Mas a grande atração da manifestação foi mesmo a ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula, Dilma Roussef.
O ato, aberto pela governadora do Pará, Ana Júlia Carepa (PT), foi dedicado ao “papel da mulher na política”. E acabou se transformando em uma demonstração de apoio à candidatura de Dilma Roussef, à presidência da República nas eleições de 2010. Na Casa de Cuba, que se tornou conhecida por suas festas e shows nos Fóruns e que nesta edição exibe um imenso painel e várias atividades celebrando os 50 anos da Revolução Cubana, uma multidão de militantes e participantes do Fórum gritavam “Olê, Olê, Olê Olá, Dilmaaaa, Dilma”. A pré-candidata petista à sucessão de Lula foi apresentada na mesa também composta pela Ministra Nilcéia Freire e pela senadora de Rondônia Fatima Cleide.
“Não posso deixar de lembrar, em primeiro lugar, do local onde nós estamos. E este é um momento importante para que todos nós possamos solicitar ao presidente dos EUA que acabe com esse odioso bloqueio econômico a Cuba. Ele pode e deve fazer isso. Nossa solidariedade ao povo cubano”, disse a governadora do Pará, que aproveitou o momento para dar um testemunho de sua história política. “Sou a única filha mulher, em sete homens. E aprendi desde cedo que tinha de conquistar meu espaço na sociedade”, assinalando a dimensão crítica da passagem do conflito no âmbito privado para o público, característica da luta contra os preconceitos de gênero e sexualidade.
O que sobressaiu, além da demonstração de força tanto do partido como da candidatura, foi a desenvoltura com que as dirigentes falaram. Não era uma clássica plenária feminista, mas um encontro de mulheres dirigentes da política, com experiência e, sobretudo, autoridade. Daí que o registro da opressão contra as mulheres também mudou, isto é, engrandeceu-se: o preconceito não se destina ao fato de que são mulheres, mas porque são de esquerda.
“Queria começar minha fala rendendo uma homenagem a uma mulher que não está mais entre nós, mas que foi muito importante para a revolução cubana, Vilma Spín, disse a ministra Nilcéia Freire, da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres do governo federal. Freire se referiu à eleição da atual presidente do Chile, Michele Bachelet, como um grande avanço no combate ao que chamou de déficit de representação da mulher nas nossas sociedades. Para ela, a questão da mulher na política é uma questão da democracia, “que não pode estar completa enquanto não estivermos equitativamente representadas nos espaços de poder”.
A ministra terminou sua fala citando a presidente do Chile: “Quando a mulher entra na política, muda a mulher. Quando muitas mulheres entram na política, muda a política”. De repente, a governadora vê Segolène Royal sentada ao lado do palco e a chama. A dirigente socialista francesa sobe e cumprimenta calorosamente a cada uma das participantes do ato. Então, foi a vez da senadora Fatima Cleide (PT), de Rondônia, que reproduziu uma frase atribuída a Benedita da Silva: “Nós mulheres, somos a metade da população e mãe da outra metade”. Foi aí que Ségolène Royal não se conteve e disse para os franceses que a acompanhavam: “c’ est genial”.
Então, Dilma Roussef pegou o microfone, falando como candidata. “Queria dizer a todos vocês, a todas as mulheres, a todas as companheiras, que eu me sinto muito feliz de estar aqui, na tenda dos 50 anos da revolução cubana, que foi um acontecimento que teve um papel histórico na minha geração. Queria saudar minha companheira Ana Júlia. Não é fácil superar preconceitos. Por isso, você, Ana Júlia; você está abrindo o caminho para várias mulheres”.
Dilma falou das realizações do governo, como a Lei Maria da Penha, mas salientou logo em seguida: “estou aqui hoje para falar de uma posição, enquanto militante e enquanto mulher”. E se apresentou, como militante de esquerda, aos milhares de participantes que escutavam, em silêncio. “Minha militância coincide com o golpe de 64, quando começava uma trajetória, no Brasil, de intolerância, tortura, morte. Este é um processo muito importante, na história do país, porque os militantes que dele participaram saíram não apenas com todas as marcas, algumas físicas: saíram com a certeza da necessidade da construção de uma democracia e da participação.”
Esse registro autobiográfico veio com a confirmação de um reconhecimento que a atual Chefe da Casa Civil faz questão de registrar: “esse processo político é o de resistência de toda uma geração”. Ela lembrou dos valores “fundamentais que foram construídos naquela época”, para contar a história do contexto de suas escolhas, perante a ditadura que se seguiu ao golpe de 64. “Eu acredito que minha geração, naquele momento, foi afastada da política. Enquanto mulheres, enquanto homens, fomos obrigados a ir ao subterrâneo da vida política”. E mesmo na opacidade a que a expressão política da resistência foi jogada, registrou Dilma, alguns nomes de “grandes brasileiros” foram incorporados, como Sérgio Buarque de Hollanda, Mario Pedrosa, Florestan Fernandes e Celso Furtado, lembrou, sob aplausos.
Depois de analisar o processo de redemocratização brasileiro, ela registrou a autocrítica perante as escolhas pós AI-5, para afirmar, em seguida: “Todos aqueles que saíram da luta subterrânea, da clandestinidade, construiram esse momento luminoso da redemocratização. Mudaram, fizeram autocrítica, mas não mudaram de lado”.
Dilma então falou daquilo que compõe mais radicalmente sua trajetória como dirigente política e partidária, que é o debate sobre desenvolvimento econômico e combate à desigualdade. Atacou o “a experiência desastrosa do Consenso de Washington”, cuja ênfase no ajuste fiscal retirara a agenda, mesmo a concentradora de renda e poder, do desenvolvimento com crescimento econômico e diagnosticou o que considera a virtude do governo Lula: “Eu acredito que a grande virada do nosso país na história recente foi uma espécie de “decifrar a charada” do governo Lula. Assim como outros partidos que integram esse campo: nós sempre dissemos que não haveria crescimento econômico neste país sem os seus 190 milhões, incluídos”. Aí está a resolução da charada, segundo Dilma:
“Tiramos a proibição da palavra desenvolvimento e colocamos esta palavra onde ela deve ser.”
“Temos um conjunto de propostas para a Amazônia”, falou em tom governamental, para lembrar do plano de chegar ao desmatamento zero em 2017, com base na regularização fundiária e numa política “consequente” de extrativismo de madeira. Mas defendeu que o fundamental hoje é “gerar empregos no Brasil”, para sustentar que inclusão não é suficiente, porque é preciso “o reconhecimento de direitos”, como o dos quilombolas e dos índios. Defendeu a reforma política, com financiamento público e listas fechadas para qualificar as relações institucionais entre partidos e sociedades e, finalmente, se despediu avaliando a grave crise financeira e moral por que passa o mundo:
“Eu queria falar um pouco para vocês sobre uma questão que é crucial, hoje. Queria fazer uma reflexão sobre a crise que estamos atravessando. Esta crise não começou nos países pobres. Ela é uma crise dos países desenvolvidos. E ela tem uma característica muito forte da relação entre o setor produtivo e o setor financeiro, que não produz coisa alguma. Essa crise dos derivativos é também a crise de um pensamento que defendeu que o Estado devia ser curvar ao mercado, e que o mercado é perfeito e se autoregulava e que esse mercado dava conta de tudo, de preferência, quanto menos, melhor. Pois eu quero dizer a vocês que o mercado tem de ser controlado, sim.”
A afirmação de Dilma ganhou uma ilustração expressiva no cenário internacional. Neste mesmo dia, um milhão e meio de franceses e francesas saíram às ruas do país para protestar contra o desemprego e o ataque do governo Sarkozy aos serviços públicos. Em várias partes do mundo, é o Estado que vem sendo convocado a resolver os problemas causados pelo modelo que teve em Davos um de seus principais centros de formulação e propaganda.