Democracia. Uma proparoxítona volátil, gasosa, repleta de significados. Utilizada, ao longo do tempo, tanto para o bem quanto para o mal. Enquanto, no passado, guerras eram travadas em nome de um conceito de Deus, no presente, potenciais globais não se cansam de tentar empurrar um conceito de democracia goela abaixo de outros países.
Foi sobre essa palavra gasosa e polissêmica que políticos e intelectuais discutiram num dos painéis da edição temática do Fórum Social Mundial que acontece em Porto Alegre. Nesta sexta-feira (27), a democracia foi criticada, questionada, enquadrada e, sobretudo, aperfeiçoada.
Durante mais de uma hora, o diretor de redação do jornal francês Le Monde Diplomatique, Ignácio Ramonet, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, o profefssor da Universidade de Paris 8, Bernard Cassen, o ativista social Chico Whitaker, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho (PT), o governador Tarso Genro (PT) e o presidente da Assembleia Legislativa, Adão Villaverde (PT), expuseram suas opiniões sobre a democracia e sua função na contemporaneidade.
Apesar dos diferentes pontos de vista, todos concordaram em um aspecto: essa forma de governo está em crise. E a culpa não é somente da direita.
“Na Europa e nos Estados Unidos temos a impressão de que a democracia não funciona mais”, diz diretor do Le Monde
O diretor de redação do jornal francês Le Monde Diplomatique, Ignácio Ramonet, avalia que a democracia não parece estar mais dando conta das demandas sociais nos países desenvolvidos. “Na Europa e nos Estados Unidos temos a impressão de que a democracia não funciona mais”, comenta.
Ele cita o exemplo específico da Grécia – onde o Banco Central Europeu não aceitou a realização de um referendo popular e o governo local acabou sendo substituído – para ilustrar que quem governa, de fato, é o setor financeiro. “Os mercados dão verdadeiros golpes de Estado, colocando tecnocratas no poder”, critica.
“É preciso disputar ideologicamente as classes ascendentes”, defende ministro
O ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho (PT), entende que a esquerda brasileira precisa “disputar ideologicamente” as pessoas que estão ascendendo na estrutura social graças às melhorias conquistadas pelos governos petistas do ex-presidente Lula e da presidente Dilma Rousseff. “É preciso disputar ideologicamente esse novo público, que muitas vezes é hegemonizado por setores conservadores. Lembro, sem nenhum preconceito, das igrejas neopentecostais”, exemplifica.
Para o ministro, não adianta apenas melhorar a qualidade de vida econômica das pessoas, ampliando seu poder de consumo de bens materiais. “Temos que avançar nos aspectos sociais e políticos da democracia. Possibilitar o acesso à educação e o consumo de bens culturais”, defende.
Gilberto Carvalho considera que as camadas emergentes da população não podem “ficar à mercê da ideologia dos meios de comunicação” e reconhece que, apesar das necessidades e vontades, o governo enfrenta limitações. “O governo é datado, há correlações de força”, explica.
“Temos que sair da ditadura dos mercados financeiros”, aponta Bernard Cassen
O professor da Universidade de Paris 8, Bernard Cassen, aponta que a única possibilidade de desenvolver um outro modelo de governança é estando fora da influência dos mercados. “Temos que sair da ditadura dos mercados financeiros”, defende.
O intelectual explica que a submissão das administrações públicas ao setor financeiro global torna quase nulo o papel da democracia e dos governos. “Os governos se veem sem possibilidade de utilizar suas prerrogativas legais de interferência, regulação e controle. Os instrumentos democráticos têm pouca influência”, lamenta.
Cassen assegura que um dos motivos da crise financeira é a relação conflitiva entre o caráter finito dos recursos naturais e a expansão sem limites do sistema capitalista. “A busca desenfreada pelo crescimento colide frontalmente com a finitude dos recursos ecológicos”, compara.
“Precisamos dialogar com os indignados”, alerta Chico Whitaker
O arquiteto e ativista social Chico Whitaker – ex-vereador do PT que deixou o partido em 2006 – alerta que a esquerda tradicional precisa dialogar com os jovens que protestam em diversas cidades ao redor do mundo. O movimento, espontâneo, apartidário e sem líderes, garantiu a seus integrantes o nome de “indignados” após milhares de jovens ocuparem a praça Puerta del Sol, em Madri, na Espanha. A ação toma conta também dos Estados Unidos, onde milhares de pessoas ocuparam o distrito financeiro de Wall Street e outras 50 cidades.
“A juventude nega os políticos e os partidos. Isso é um sinal de que a democracia representativa não está funcionando. Precisamos tirar lições dos indignados, conversar com eles”, sugere Whitaker.
Ele explica que esses protestos ocorrem porque a população não encontra no Estado canais de diálogo e não enxerga na política institucional a possibilidade de mudança. “Essa geração percebe que o sistema político pelo qual poderia se expressar democraticamente não funciona. Então ocupam as ruas e praças para protestar e fazer propostas alternativas”, comenta.
O ex-petista cobra a apĺicação de mecanismos assegurados na Constituição Federal, como o plebiscito, para a decisão de temas complexos da vida nacional, como a matriz energética, por exemplo. “O BNDES colcou muito dinheiro para garantir a construção da usina nuclear Angra-3. E se fala em contruir outras quatro ou cinco. Por que não fazer um plebiscito para saber se a população ralmente quer esse tipo de energia?”, provoca.
Tarso defende reforma política que limite mandatos legislativos e acabe com financiamento privado de campanha
O governador Tarso Genro (PT) entende que, para haver uma mudança na poliica brasileira, é preciso que a população pressione os partidos e o Congresso Nacional para que seja aprovada uma profunda reforma. “Uma reforma que não permita mais de dois mandatos parlamentares e que acabe com o escandaloso financiamento privado de campanha”, defende.
O petista reconhece que não há disposição dos partidos em alterar as regras e revelou sua mágoa por não ter conseguido levar adiante na Câmara dos Deputados uma proposta de reforma política quando era ministro da Justiça do governo Lula. “Não teve sequer condições de colocar em regime de urgência porque não houve interesse dos partidos”, lamentou, garantindo que fazia também uma auto-crítica ao seu próprio partido, o PT.
O governador teceu comentários sobre a situação da democracia no mundo e concluiu que, na Grécia, o vazio democrático pode gerar rupturas autoritárias à esquerda ou à direita. “A democracia grega auto nega-se, na medida em que o Banco Central Europeu determina que os gregos não podem realizar um plebiscito”, critica.
Tarso considera que a democracia nos Estados Unidos serve de pretexto para “legitimar as guerras e ocupações militares ao redor do mundo para que o país possa se alimentar de energia fóssil e imprimir na sociedade global um sentimento de consumismo irrefreável”, condena.
O petista ressalta, porém, que na América Latina há exemplos positivos. “Bolívia e Equador revigoram suas democracias e articulam as bases ideológicas de um novo constitucionalismo. Isso ativa um conjunto de sujeitos sociais historicamente secundários e ameaça a visão de estabilidade imperial da democracia norte-americana”, avalia.
Villaverde destaca importância da democracia participativa
O presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Adão Villaverde (PT), também corrobora a ideia de que a democracia representativa está em crise. Mas entende que o problema se estende “ao conjunto das instituições do Estado moderno”.Para o deputado, é preciso “repensar a forma clássica de organização partidária” e construir espaços de controle social da gestão pública.
O petista lembra que a instituição de conselhos setoriais na sociedade civil – além da própria experiência do Orçamento Participativo – foram extremamente exitosas para aperfeiçoar a democracia. “Se não fosse a democracia participativa, a representação política não teria se renovado”, avalia.
“A esquerda esqueceu de pensar”, alfineta Boaventura
O sociólogo português Boaventura de Souza Santos foi, sem dúvida, a personalidade mais aplaudida durante o painel do Fórum Social Temático que debateu os sentidos da democracia. Logo no início de sua fala, já arrebatou palmas entusiasmadas e o apoio do público. “Dói-me ver tantas mulheres neste auditório e nenhuma na mesa (do painel)”, lamentou.
O diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra não poupou críticas à esquerda e, mediante faixas de manifestantes que exigiam demarcações de territórios quilombolas e indígenas por parte do governo federal brasileiro, alfinetou o Palácio do Planalto. “Como podemos nos surpreender que indígenas e quilombolas nos perguntem qual a diferença entre esquerda e direita, se ambas os golpeiam da mesma forma?”, indagou, sob fortes aplausos e uma visível contrariedade do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho (PT), que balançou a cabeça em sinal negativo após o comentário.
Boaventura afirma que a esquerda pedeu seu “DNA originário” e explica que os jovens estão ocupando praças e ruas ao redor do planeta porque “são os únicos espaços que ainda não estáo colonizados pelo capitalismo financeiro”.
O sociólogo explica que “a maldição da esquerda foi transformar militantes em funcionários” e defendeu que os partidos de esquerda passem por uma “refundação” e voltem a refletir. “A direita não precisa pensar, pois o sistema financeiro mundial pensa por eles. Mas a esquerda tem que pensar. E ela esqueceu de pensar”, criticou.