Especialistas apontam riscos de projeto que legaliza a terceirização

Leonardo Sakamoto

O projeto de lei 4330/2004, de autoria do deputado federal Sandro Mabel (PMDB-GO), pretende regulamentar a terceirização do trabalho. Mas legaliza a contratação de prestadoras de serviços para executarem atividades-fim da empresa, ou seja, aquelas para as quais foram constituídas. Hoje, baseado em um entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, ela é possível apenas para funções que não são essenciais. Outro ponto polêmico é que o PL dificulta a responsabilização de empresas por conta de violações trabalhistas de suas terceirizadas.

Centrais sindicais afirmam que o projeto pode contribuir com a precarização do trabalho e têm se manifestado de forma contrária a ele. Reclamam que, com ele transformado em lei, os chamados “coopergatos” (cooperativas montadas para burlar impostos) e os “PJs” irão se multiplicar e o nível de proteção do trabalhador cair. Segundo eles, setores como empresas têxteis, de comunicações e do agronegócio têm atuado pela liberalização da terceirização.

O ministro do Trabalho e Emprego, Manoel Dias (PDT), deu uma declaração defendendo a aprovação do projeto, indo ao encontro do que pediu o empresariado na comissão quadripartite (que incluiu também governo, parlamentares e trabalhadores) montada para discutir o tema.

De acordo com um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos em parceria com a Central Única dos Trabalhadores, em média um trabalhador terceirizado trabalha três horas a mais por semana e ganha 27% menos que um empregado direto. No setor elétrico, por exemplo, a taxa de mortalidade de um funcionário de uma prestadora é 3,21 vezes superior ao de um trabalhador de uma empresa contratante.

A terceirização tresloucada pode tornar a dignidade responsabilidade de ninguém. Mais ou menos assim: Um consórcio contrata o Tio Patinhas para tocar um serviço, que subcontrata a Maga Patalógica, que subcontrata o Donald, que deixa tudo na mão de três pequenas empreiteiras do Zezinho, do Huguinho e do Luizinho. Às vezes, o Zezinho não tem as mínimas condições de assumir turmas de trabalhadores, mas conduz o barco mesmo assim.

Aí, sob pressão de prazo e custos, aparecem bizarrices. Depois, quando tudo acontece, Donald, Patalógica, Tio Patinhas e o consórcio dizem que o problema não é com eles – afinal, eles não rabiscaram carteira de trabalho alguma. E aí, ninguém quer pagar o pato – literalmente. Ficam os trabalhadores a ver navios, como Patetas.

Solicitei a três atores do direito, especialistas no tema, que explicassem as consequências negativas para os trabalhadores caso o projeto de lei seja aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados (em caráter terminativo), depois no Senado Federal e sancionado pela Presidência da República:

Rafael de Araújo Gomes, procurador do trabalho da 15ª Região

A consequência da aprovação de projetos sobre o tema em trâmite no Congresso Nacional é que poderá uma empresa, se assim desejar, terceirizar não apenas parte de suas atividades, mas todas elas, não permanecendo com qualquer empregado. Teríamos então uma empresa em funcionamento, com atividade econômica, mas sem nenhum funcionário.

Tomemos, para melhor visualização de tal disparate, autorizado pelos projetos, o caso do banco Bradesco, empresa com capital social superior a 30 bilhões de reais e mais de 70 mil empregados.

Aprovada a terceirização nos moldes pretendidos, nada haverá na legislação que impeça o Bradesco de livrar-se de todos os seus empregados, permanecendo com nenhum, mediante a terceirização de todas as funções. Se tal opção for economicamente vantajosa ao banco, ela poderá ser adotada. Teremos então uma empresa com capital social, faturamento e lucro da ordem de vários bilhões de reais, e nenhum empregado, ou seja, nenhum ônus trabalhista.

Parece o cenário com o qual sonharam os banqueiros de todas as épocas em seus devaneios mais loucos, não? Todos os lucros, e nenhuma responsabilidade. Pois tal sonho de qualquer capitalista poderá enfim se transformar em realidade, em nome da “modernidade” e da “competitividade”.

Renato Bignami, auditor fiscal do trabalho em São Paulo

Ao autorizar, via processo legislativo, a subcontratação da principal (ou principais) atividade(s) de determinada empresa, sem que haja uma contrapartida jurídica de manutenção da garantia do equilíbrio contratual, a exemplo da responsabilização solidária, o legislador está dando um tiro de misericórdia no direito do trabalho.

Todas as relações irão se dar com base no direito civil/mercantil, privatistas ao extremo. Futuramente não haverá mais empregados. Quem irá contratar uma pessoa que reclama, que fica grávida, que falta ao serviço, que não abaixa a cabeça e atende a todo tipo de ordem, e que, além do mais, custa o dobro e possui direitos pétreos, como limite de jornada de trabalho e piso salarial? Irá naturalmente contratar uma empresa terceirizada, que, por sua vez, também irá contratar uma quarteirizada e que, em última análise, contratará um micro-empreendedor individual, por exemplo, sem que isso possa ser considerado fraude, à luz da legislação proposta pelo deputado federal Sandro Mabel.

Trata-se da externalização total e completa dos riscos da atividade econômica sem que haja um mínimo de divisão dos lucros dela advindos, via valorização do trabalho. Nossa sociedade terá uma lei que valoriza a liberdade de empresa (princípio da livre iniciativa) ao extremo, sem garantir a proteção que o direito do trabalho buscou construir, no decorrer dos últimos 90 anos. No entanto, devemos sempre lembrar que a Constituição é clara, no artigo 1º, inciso IV, ao afirmar que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático de Direito que tem por fundamento os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, em iguais proporções.

O PL 4330 subverte esse princípio e “desregula” a balança, em nítido desvalor do trabalho. Caso o PL seja convertido em lei será o caos e seguramente não colaborará nem para garantir segurança jurídica aos empresários e, muito menos, para construir coesão social, tão necessária nos dias de hoje, em que vemos a população sair às ruas clamando por melhores condições de vida.

Por fim, teremos a legislação mais liberal do mundo ocidental, mais ainda que a lei chilena e seguramente mais que qualquer ordenamento europeu (todos garantem, pelo menos, que haja solidariedade jurídica entre os elos).

Iremos de encontro à Recomendação 198, da Organização Internacional do Trabalho, que sugere um maior nível de proteção à relação de emprego, e uma valorização crescente do princípio da primazia da realidade como fundamental na determinação da relação de trabalho. Enfim, o PL legitima todo tipo de fraude a que estamos acostumados a denunciar e a atacar, no curso da atividade inspecional. Um verdadeiro retrocesso.

Marcus Barberino, juiz do Trabalho da 15ª Região

O pior cenário é não haver nenhuma defensa ao direito de negociação coletiva e de representação sindical. Ao permitir o deslocamento de uma atividade estratégica da empresa para qualquer prestador de serviço, você está alterando de modo unilateral a formação dos contratos coletivos de trabalho e, por via indireta, dos contratos individuais.

Outra dimensão dramática é não estabelecer a solidariedade entre prestadores e tomadores. Se eles criam os riscos não podem ter limitação quanto à responsabilidade dos riscos em face de terceiros.

A questão, tal como posta, acaba por colocar o crédito do trabalhador em posição de proteção jurídica inferior a de um particular (pois aqui incide as regras do Código Civil) e da União (cuja violação de créditos tributários implica responsabilidade solidária dos devedores).

Enfim é a mercantilização tão violenta quanto na época da revogação da “poor law” inglesa em 1834.

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