Por Eduardo Fagnani*
Segundo estudo recente realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o Brasil é o campeão mundial no quesito "generosidade" do sistema de Previdência Social. O estudo compara as regras para a concessão das aposentadorias programadas no Brasil, de um lado, e, de outro, os critérios adotados em 22 países. E conclui: "O Brasil é o que possui regras menos restritivas para a concessão de aposentadorias programadas".
A tese da generosidade é mais um mito. Com base nos dados apresentados, podemos tirar conclusões diferentes: o Brasil adota regras semelhantes aos países desenvolvidos; essa equivalência, num dramático contexto socioeconômico, nos coloca longe do topo do ranking mundial.
O principal argumento para justificar a tese da "generosidade" é falacioso: o Brasil não estabelece idade mínima para a aposentadoria.
Ora, a reforma da Previdência realizada em 1998 restringiu o legado da Constituição Federal de 1988, criando duas alternativas: a) aposentadoria "por idade" -65 anos para homens e 60 anos para mulheres, além da exigência de contribuição mínima por 15 anos; e b) aposentadoria "por tempo de contribuição" -35 (homens) ou 30 anos (mulheres). Nesse caso, até que os contribuintes atinjam 60 ou 55 anos de idade, respectivamente, incide o "fator previdenciário", que avilta o valor do benefício, amplia o período de contribuição e posterga o início da inatividade. Observe-se que a taxa de incremento anual das "aposentadorias por tempo de contribuição" declinou de 10,2% para 2,1% entre o período anterior à introdução do fator e o posterior.
Considerando esse fato, as regras brasileiras de aposentadoria "por idade" (65 e 60 anos) são mais exigentes que as praticadas por alguns países desenvolvidos. Alemanha, Bélgica, França e Canadá exigem idade mínima de 60 anos para homens e mulheres. O mesmo se observa nos EUA (62), na Suécia (61) e na Itália (57).
As regras de "tempo de contribuição" (35 e 30 anos) também são restritivas. EUA e Finlândia exigem cerca de dez anos; na Alemanha, 15 anos (homens) e dez anos (mulheres); e o Canadá não exige tempo de contribuição. O Brasil se equipara à Bélgica (35) e perde somente para o Reino Unido (44).
Outro mito é o de que, no Brasil, as aposentadorias são precoces. Nesse caso, os dados são manipulados pela consideração do estoque de benefícios, e não pelo fluxo dos novos benefícios concedidos a partir da reforma de 1998. A idade média das novas "aposentadorias por tempo de contribuição" aumentou de 49 para 54 anos entre 1997 e 2005. Atualmente, a idade média geral ("idade" e "tempo de contribuição") se situa em torno de 60 anos. Em poucos anos, superamos a Bélgica (58) e a França (59) e nos aproximamos da média dos 22 países (61,5) considerados pelo Ipea.
O "mito da generosidade" se mostra mais paradoxal se considerarmos que não há como demarcar nenhuma equivalência entre o nosso trágico contexto socioeconômico e o contexto dos países desenvolvidos. Nosso PIB per capita é de cerca de US$ 7,5 mil. Para 11 dos 22 países analisados, esse valor se situa entre US$ 25 mil e US$ 38 mil. A expectativa de vida no Brasil é de 68,1 (homens) e 75,8 anos (mulheres). Em 14 países retratados, esse indicador gira entre 76 e 79 anos (homens), e, em 17, ele é superior a 80 anos (mulheres).
Além disso, ocupamos a terceira pior colocação no ranking da distribuição de renda. Aqui, o coeficiente de Gini se aproxima de 0,6; na maior parte dos países analisados, se situa entre 0,2 e 0,4. Temos a pior posição mundial em termos de desigualdade: a razão entre a renda dos 10% mais ricos e a dos 40% mais pobres é de 25 vezes; e, para a maior parte dos países analisados, essa razão gira em torno de cinco vezes.
O estudo também desconsidera outras características estruturalmente injustas do nosso mercado de trabalho. Hoje, o desemprego equivale a 16% da população economicamente ativa e, entre os assalariados do setor privado, mais de 50% têm emprego informal. Ou seja, a maior parte dos trabalhadores dificilmente terá condições de comprovar 35 anos de contribuição para a Previdência. Esse é o maior problema atual. Hoje, por causa da Constituição de 1988, mais de 80% dos idosos têm a aposentadoria como fonte de renda. Nas próximas décadas, não será possível manter essa cobertura, e os "meninos de rua" sofrerão a impiedosa concorrência dos "velhos de rua".
A reforma da Previdência deveria priorizar a inclusão desse contingente. Todavia, a ortodoxia fiscal avança na direção oposta: tornar ainda mais restritivas as regras da Previdência.
* Eduardo Fagnani, 52, é professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho). Ele escreveu este artigo originalmente para a Folha de S. Paulo.