*João Sicsú
No início do segundo mandato de FHC, foi estabelecido o tripé: I) política fiscal – realizar superávits primários necessários para reduzir a relação dívida/PIB; II) política monetária – utilizar a taxa de juros como único instrumento de controle da inflação; III) política cambial – estabelecer um regime de câmbio flutuante em que o mercado determinaria a taxa de câmbio e, portanto, o BC não precisaria acumular reservas em grandes volumes. O tripé macroeconômico de FHC era liberal e conservador.
Tal modelo era tratado como solução única, inquestionável. Entretanto, o país e o mundo vivem hoje um momento diferente: a agenda foi desinterditada. Está sob agudo questionamento o modelo liberal que se dizia estar apoiado nas boas práticas internacionais. Quais? Aquelas praticadas pelas autoridades responsáveis pela regulamentação do sistema financeiro americano? Aquelas elogiadas e sugeridas pelo Lehman Brothers, AIG e o Merrill Lynch?
Os liberais não entregaram o que prometeram. Argumentam que a causa do insucesso foi que o modelo deveria ter sido aplicado em conjunto com reformas estruturais que não foram realizadas – embora isto não seja verdade, porque países como Argentina e Equador realizaram todas as recomendações. Dizem: “No caso dos países latino-americanos faltaram as reformas”. Mas o que dizer da economia americana em crise? Lá o que faltou? Lá se revela o esperado. O capitalismo desregulado é indomável: o mercado financeiro é capaz de cometer suicídio por overdose.
O modelo econômico vigente no Brasil, iniciado na era FHC, foi flexibilizado, especialmente, a partir da instituição do PAC, em 2007. No Brasil, o pilar do regime cambial que aceita acentuadas valorizações e desvalorizações mostrou-se inadequado ao equilíbrio das contas externas e à estabilidade monetária. O pilar do sistema de controle da inflação, baseado na utilização de um único instrumento, mostrou que precisa ser ampliado. E o terceiro pilar, focado apenas na geração de superávits primários e na redução da relação dívida/PIB, mostrou-se limitado diante das necessidades de construção de infra-estrutura pública, geração de empregos e universalização das políticas sociais.
Nos dias de hoje, à chamada responsabilidade fiscal foram associadas as responsabilidades social e com a geração de empregos. O equilíbrio orçamentário será alcançado como resultado do vigor e da qualidade do crescimento – e não como fruto de políticas e reformas de redução de direitos sociais. E esta melhor qualidade refere-se a um tipo de crescimento que gera milhares de negócios e milhões de empregos formais. E ainda a um quesito ímpar: a taxa de variação do investimento é superior entre duas e três vezes a taxa de crescimento do PIB.
A administração fiscal enriqueceu-se, possui agora objetivos múltiplos. O resultado orçamentário nominal de janeiro a julho de 2008 foi deficitário em apenas 0,53% do PIB. O PAC desembolsou neste ano, até agosto, R$ 6,7 bilhões, gerando milhares de empregos. A trajetória da dívida pública segue bem comportada: em dezembro de 2007 era 42,7% do PIB, em agosto de 2008 caiu para 40,6%. As despesas correntes do governo federal, como proporção do PIB, se reduziram de 25,9%, entre janeiro e julho de 2007, para 24%, em igual período deste ano. Na mesma base de comparação, os gastos previdenciários foram reduzidos de 6,5% para 6,2% do PIB.
O PIB apresentou crescimento de 6,1% no segundo trimestre. Há oito trimestres, o PIB cresce a taxas superiores a 4%. O investimento voltou a apresentar forte crescimento; no segundo trimestre deste ano, comparado com igual período de 2007, cresceu 16,2%. Há 13 trimestres seguidos, as taxas de crescimento do investimento superam o dobro da taxa de crescimento do PIB.
A taxa de desemprego metropolitana, em agosto, foi reduzida a 7,6%. A média de 2007 foi de 9,8%. Foram criados (admissões menos demissões), nos primeiros sete meses de 2008, quase 1,6 milhão de novos empregos com carteira – ao longo de todo o ano passado foram criados 1,62 milhão.
A responsabilidade com a manutenção de níveis moderados de inflação está incorporada à agenda do país. A inflação não é mais controlada somente com elevações da taxa de juros. Outros instrumentos também são utilizados. A redução da Cide é um exemplo. O aumento do crédito para a produção agrícola foi outro instrumento utilizado.
Depois de encerrar o primeiro semestre com uma média mensal de 0,6%, o IPCA reduziu seu ritmo de alta em julho (0,5%) e em agosto (0,28%). Este resultado positivo deve-se exclusivamente à desaceleração da corrida dos preços dos alimentos que, em junho, alcançaram 15,8%, no acumulado de 12 meses, e em agosto se reduziram para 13,8%. Os demais preços (exceto alimentos), no acumulado de 12 meses, atingiram, em agosto, 4,1%.
A política liberal de câmbio flutuando livremente sem intervenções do BC foi enterrada. O país acumulou mais de US$ 200 bilhões em reservas, para utilizá-las quando necessário. O BC realiza leilões de moeda estrangeira, mostrando sua disposição em reduzir a volatilidade dos mercados. Contudo, cabe mencionar que é neste pilar, o das relações com o exterior, que o modelo deu passos mais vagarosos: a conta corrente está deficitária e os movimentos bruscos da liquidez curto-prazista são uma ameaça.
Enfim, está em curso uma transição de um modelo liberal de promessas (não cumpridas) para um modelo desenvolvimentista de resultados. Os passos têm sido lentos e cuidadosos, mas a direção é correta. Os números aí estão como provas. Contudo, é indispensável uma redução ainda maior das vulnerabilidades externas. No front externo, a situação é muito delicada e merece toda a atenção.
Diante da crise financeira internacional, os liberais tentarão interromper essa transição reapresentando o seu conhecido cardápio. Afirmarão ainda que qualquer outro caminho é aventura. Vão propor reformas de redução de direitos sociais e sugerir que é hora de praticar políticas de contenção do crescimento dos negócios produtivos e da geração de empregos – como se já não bastasse o sacrifício imposto pela própria crise aos trabalhadores e empresários. Se o país decidir paralisar para esperar a tempestade passar e somente então reingressar na rota do desenvolvimento, terá realizado apenas mais um “vôo de galinha” entre 2006 e 2008. Um “vôo de galinha” a mais não faz a história mudar. Portanto, a hora é de persistir na rota e de buscar caminhos próprios.
João Sicsú é diretor de Estudos Macroeconômicos do Ipea e professor do IE-UFRJ.