Carta Maior
Por Katarina Peixoto*
O outro mundo possível tornou-se nem tão outro assim. E quando a possibilidade se torna realidade, mesmo que só uma parte desta, um problema salta aos olhos: o que é mesmo possível, que ainda não se tornou real?
“Rejeitamos a falsa escolha entre nossa segurança e nossos ideais. (…) Nossa segurança emana da justeza de nossa causa, da força de nosso exemplo, das qualidades da temperança, da humildade e da contenção”. Barack Obama, discurso de posse em 20 de janeiro de 2009.
Na nona edição do movimento ou processo a que se vem chamando Fórum Social Mundial, essa frase recortada do discurso de Obama ganha um sentido que merece ser pensado. Não com a ilusão de que nosso pensamento vai nos oferecer um modelo, variante de um software quem sabe, a ser aplicado desde e com o começo das atividades do FSM e dos Fóruns paralelos que já começam em muito breve suas atividades.
O outro mundo possível, afinal, em algum sentido talvez irredutível tornou-se nem tão outro assim. E quando a possibilidade se torna realidade, mesmo que só uma parte desta, um problema salta aos olhos: o que é mesmo possível, que ainda não se tornou real, e o quê, neste real, expressa a correspondência atual do que era simplesmente possível?
A edição 2009 do Fórum Social Mundial em plena Amazônia, em Belém do Pará, estado governado por uma mulher e um partido de esquerda, durante o segundo mandato de Lula e dias após a posse do primeiro presidente negro eleito dos EUA é por si só um acontecimento relevante. Não bastasse, a América do Sul tem hoje como exceção governos alinhados até a semana passada, pelo menos, com essa página sombria da história recente da humanidade, capitaneada por George W. Bush; a maioria dos seus países decidiu tomar ou tentar tomar seus próprios rumos, com as nuanças mais variadas e contingentes. Para completar o quadro, vivemos a mais profunda e devastadora crise do capitalismo desde pelo menos a débâcle financista dos anos 30 do século passado, resumindo o diagnóstico de alguns conhecedores dos fatores determinantes da conjuntura. Ocupações militares, colonialismo, sanhas genocidas continuam dando o ar de sua desgraça e de seu horror.
O real e o possível, levando em conta essa quadratura de fenômenos, dão muito o que pensar, não apenas frente ao que vem ou deve vir, mas ao que já fizemos e ao que somos com e apesar do que fizemos. Não é exagero algum dizer que são dos do lado de cá – daqueles que afirmaram e cavaram o possível diante das mais variadas impossibilidades do fatalismo então triunfante nos anos de trevas – os direitos autorais que concernem à experiência do “yes, we did it”.
Obama disse que o mundo mudou. E o mundo não mudou porque Barack Obama foi eleito, como se pode saber, mas o contrário ocorreu: sua eleição deriva da mudança no mundo. E essa inversão dos fatores históricos, exatamente por estes terem essa marca, altera a ordem das consequências, exigindo atenção perante as suas causas e significados. Não se trata de reivindicar a vitória de Obama, nem da conversa simpática segundo a qual ele e seu governo estariam “em disputa”. Não foi tampouco o ou os movimentos – na sua imensa maioria de resistência à avalanche utópica da globalização da finança – em torno do Fórum Social que conduziram eleições e “causaram” vitórias eleitorais e políticas determinantes.
A coisa mais importante que emerge e faz problema nesta passagem histórica do possível ao real que está acontecendo é que, seja lá quais foram as equações dos gestos e negociações, das lutas e concessões, das batalhas e resistências, da estreita relação pensável em termos clássicos sob as rubricas da causalidade e do efeito, a realidade impregnou-se de possibilidade e o outro mundo, imaginado e desejado como outro, vem deixando, para quem tem olhos de ver, de ser estranho.
Antes que algum materialista convicto de suas concepções idealistas se pronuncie, gostaria que me fosse permitido tentar demonstrar que o realismo, não o idealismo, impregnou a realidade. E que este realismo, não-caricato e impossivelmente niilista é nota característica da esquerda; em contrapartida, à parte o fanatismo religioso mais empedernido, muito poucas coisas podem ser comparadas, em termos de idealismo e descarnamento, ao liberalismo degenerado da finança desregrada e capitaneada por máquinas político-administrativas de guerra e fundamentalismo religioso, de que o último período foi prodigioso em exemplos.
Algumas rudimentares reduções ao absurdo podem nos ajudar (ainda que não justificar com suficiência, como de resto raramento o fazem), a ver a superioridade, sobretudo moral e política, dos realistas sobre os idealistas. Vejamos:
Se prestarmos atenção ao que podemos já ver e ler no presente, a ordem do presidente recém empossado de suspender julgamentos e de datar o fechamento da vergonhosa prisão de Guantánamo não tem rigorosamente coisa alguma de idealista, e menos ainda de utópica. A decência e o respeito à Convenção de Genebra, a recusa da prática da tortura e do não-reconhecimento do direito ao devido processo legal entre humanos e entre cidadãos não requer idéias, pelo menos não necessariamente: requer autoridade moral, tipo de expressão anfíbia de que se fazem as coisas mundanas da vida entre homens: depende tanto de preceitos como de carne.
Dada a história moderna, em que o devido processo legal, os Direitos do Homem e do Cidadão e a Constituição dos Estados Unidos da América entrou em vigor, não é de idéias que se precisa na assinatura do ato presidencial que sucedeu, quase imediatamente, a posse do atual presidente norte-americano.
Tampouco é preciso pensar um outro mundo para defender uma mudança grave e irreversível nos atuais padrões de consumo e debruçar-se sobre essa possibilidade. Porque a incrição do possível desaparecimento da vida mais elementar no planeta não é mais objeto de abstração, simplesmente: é real e não é preciso muito esforço intelectual para perceber a importância que as previsões e calamidades climáticas vêm adquirindo no nosso dia-a-dia.
Não é utopia o que está faltando; não são idéias, nesse sentido um tanto primitivo de representação: é o respeito e o reconhecimento da realidade. Obama entendeu e obedeceu à realidade: daí vem sua afirmação e reivindicação de que é possível impregnar a realidade de possibilidades, consigo.
Quem tem vergonha e repulsa perante a tortura, respeita a dignidade humana e não pode, por esse motivo, ser tomado como idealista. Donald Rumsfeld, um dos idealizadores de Guantánamo, junto a Dick Cheney, ex-vice-presidente de George W. Bush não parece terem tomado os seus próprios corpos e dignidade em consideração, quando deliberaram introduzir essa calamidade moral na realidade e na história recente.
Quem combate o trabalho escravo e o trabalho infantil não exige um mundo ideal, mas um mundo em que o estado de direito exista enquanto vigência, enquanto prática irrefletida e necessariamente irrefletida, pelo menos em primeiro lugar.
As idéias dessas coisas já não são mais idéias quando se tornam coisas e regras de direito e isso faz desses combatentes verdadeiros realistas.
Os que se põem entre baleias e navios pesqueiros descumpridores de tratados internacionais de preservação da fauna de grandes mamíferos marinhos ainda existentes não são desorbitados avessos ao avanço da ciência que o óleo da baleia produz enquanto afrodisíacos em restaurantes caros do Japão: não precisa sonhar com um outro mundo para entender que o desaparecimento de uma espécie sempre implica uma calamidade no e nos ecossistemas. E isso serve igualmente para os que resistem à voracidade dos royalties sobre sementes geneticamente modificadas. Darwin, não Deus nem Trotsky, mostrou isso. E se tem uma coisa da qual o naturalista inglês jamais pode ser acusado é de idealista.
As mulheres e homens israelenses que habitam e constituem os acontecimentos e debates dos Fóruns Sociais não são loucos inimigos de qualquer pátria sagrada; os refuseniks, militares das Forças Armadas Israelenses, que se recusam a combater em territórios ocupados desde 1967 por Israel não reivindicam posições de messias, nem de portadores da liberdade a ser “aplicada” seja lá onde for. Os militantes israelenses em defesa dos direitos humanos e portanto defensores dos direitos reiteradamente negados aos palestinos não são fanáticos, simplesmente porque as condições de seus posicionamentos e de suas escolhas são a existência deles, dos seus, do seu país, da sua moral, da sua liberdade. Essas coisas não são idéias; essas coisas e pessoas existem com ou sem idéias a seu respeito.
Os palestinos não precisam de tratado algum para que sua existência e seus direitos sejam reconhecidos. Nem as mulheres e crianças violadas incessantemente pelas guerras, tentativas de limpeza étnica e violações aos direitos mais elementares precisam de teses.
Semente, comida, terra, água, carne (isto é, corpo), ar: essas coisas não são idéias. São coisas reais cuja existência não depende de idéias, pelo menos para quem é realista.
O Conselho de Segurança da ONU não é uma idéia, aliás e por incrível que pareça; também não o é a comunidade internacional. Evo Morales e Mustapha Barghouthi são homens, cidadãos, sujeitos, gente. Não são personagens de mundos inventados por mentes infelizes que não aceitam a realidade vista pelos olhos invertidos da Senhora Rice ou da candidata Tzipi Livni.
Não há problema algum em ter idéias, pensar alternativas, lutar para que o mundo melhore, inclusive para que venha a ser outro, num sentido metafórico. Não é disso, contudo, que estou tentando falar. Porque o problema nunca está sozinho nas palavras, se não habita ou habitou, já, as coisas.
Quem opõe segurança a ideais, teoria e prática, corpo e alma, princípios morais e decisões militares não pode ser combatido por idealistas.
Idealismo versus idealismo pode o quê, além do triste espetáculo da guerra fria, incapaz de aprendizado com a história?
Essas falsas oposições, ricas em expressão contra e dentre os Fóruns Sociais, não precisam de idéias para serem superadas, mas de humildade, contenção, temperança, justiça e exemplo. Essas são a nossa parte nesse latifúndio, pelo menos a dos encarnados, finitos, realistas e decentes frente a nós mesmos e aos outros, como mundo. Porque sim, nós fizemos, porque podemos.
*Katarina Peixoto é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]