Marcio Pochmann*
A trajetória recente do desenvolvimento brasileiro permite que o debate político atual possa se concentrar cada vez mais sobre o futuro próximo que o conjunto da sociedade almeja para o país. Até pouco tempo, contudo, o foco das discussões encontrava-se aprisionado, quando não no passado, na emergência do “curtoprazismo”.
Esse patamar de maturidade alcançado ao longo dos últimos 25 anos pelo processo de consolidação democrática resulta de certos êxitos obtidos pelo reposicionamento do Estado mais recentemente. Recorda-se que a reforma do Estado defendida na década de 1980 terminou sendo inviabilizada pela forma com que as alianças políticas em prol da redemocratização foram conduzidas.
A nova República teve o inegável mérito de consagrar tanto a transição democrática como a geração da Constituição Federal que reconectou o país nas possibilidades contemporâneas de modernização.
Nos anos 1990, contudo, o Estado foi tratado como fundamento principal dos problemas nacionais, passando, por conta disso, por medidas de desconstrução que apontaram para um dos maiores procedimentos de concentração de renda e riqueza da história nacional.
Três foram os principais procedimentos adotados para consagrar a brutal transferência de ativos financeiros e econômicos do país. O primeiro referiu-se à opção dos governos de plantão pela elevação do endividamento público, o que permitiu transferir – em menos de uma década – cerca de 1/5 do Produto Interno Bruto (PIB) à cúpula da pirâmide social na forma da financeirização da riqueza.
O segundo procedimento se deu por intermédio do processo de privatização do setor produtivo estatal. Quase 1/6 do PIB foi transferido da propriedade pública para mãos privadas nacionais e estrangeiras, o que possibilitou transformar os já muito enriquecidos nacionalmente em super ricos na escala global.
Por fim, o terceiro procedimento resultou do dramático aumento da carga tributária no país. Acontece que a elevação da tributação no montante equivalente a 1/10 do Produto Interno Bruto nacional se deu fundamentalmente sobre a base da pirâmide social brasileira. Ou seja, a população com remuneração de até dois salários mínimos mensais, que pagava tributos responsáveis pela absorção de quase 1/3 de seu rendimento, passou recolher quantia equivalente à metade de seus ganhos mensais.
Na cúpula da pirâmide social, a ausência de tributos específicos, bem como a ação do planejamento tributário, continuou permitindo a evasão contributiva continuada da arrecadação tributária nacional.
Em pleno regime de débil dinamismo produtivo, o ajuste fiscal permanente promovido pelas políticas governamentais da década de 1990 favoreceu significativamente os interesses da parcela privilegiada dos brasileiros.
Nesse sentido, observa-se que o Estado era concebido como problema enquanto incapaz de oferecer alternativas necessárias à sustentação da riqueza aos segmentos impossibilitados de elevar seus ganhos por meio do baixo dinamismo produtivo.
A opção pela macroeconomia da financeirização da riqueza, fundada no ajuste “permanente” das finanças públicas, abriu caminho para que quantia equivalente a 45% do PIB fosse transferida de pobres para ricos no Brasil conduzido pelo neoliberalismo.
A recente volta do vigor econômico apontada pela maior dinâmica do setor produtivo, que cresce quase duas vezes mais que a experiência da década de 1990, permitiu novas escolhas para o reposicionamento do Estado nacional. Sem o abandono do compromisso com a estabilidade monetária, foi possível começar a reorientação da condução das políticas públicas, abrindo cada vez mais oportunidades de apoio também à base da pirâmide social.
Em resumo, o Estado deixou de ser tratado como problema, para assumir a condição de parte das soluções do conjunto dos problemas nacionais. Ao mesmo tempo em que o processo de endividamento público retrocedeu em relação ao PIB, o setor público estatal foi orientado para contribuir no financiamento do investimento voltado, entre outras áreas, para a ampliação da matriz energética, da infraestrutura econômica e social.
De um lado, bancos públicos vistos como improdutivos e passíveis de privatização foram resgatados e recolocados na marcha da função de apoio à produção e ao desenvolvimento nacional. De outro, empresas estatais que ainda não haviam sido privatizadas foram reconectadas ao esforço maior de executar suas missões de apoio ao crescimento estratégico da produção.
Toda essa reorganização do Estado brasileiro encontra-se incompleta. Mas seus resultados são inequívocos, especialmente em relação à experiência da década de 1990. Há, ainda, muito a ser feito. Mas isso, todavia, comporá parte do debate sobre os rumos do Brasil dos próximos anos. Para onde seguir. No mesmo sentido do fortalecimento do Estado como condição básica do projeto de desenvolvimento nacional com justiça social e sustentabilidade ambiental?
Quando se analisa a situação do conjunto dos municípios brasileiros, percebe-se que a presença do Estado ainda encontra-se insuficiente. Mais da metade dos municípios não conta com agências de banco público e estabelecimento público de cultura, enquanto um a cada três municípios não tem estabelecimentos públicos de saúde para atendimentos de urgência e internação. Somente 2,8% dos municípios possuem estabelecimentos públicos de ensino superior.
O sentido do desenvolvimento nacional depende da superação do impasse nacional em torno do Estado. Em 2010, esse debate prosseguirá, guiando o futuro do Brasil.
* Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.