Lidar com a pobreza, na verdade, é a forma mais eficaz de lidar com uma crise econômica, muito mais eficaz do que a estratégia de se dar dinheiro aos bancos ou grandes empresas. É assim que se restauram os fluxos de renda, de capital, e a capacidade de tomada de empréstimo da população e do sistema como um todo, diz James Galbraith, em entrevista concedida a Carta Maior no Seminário sobre Desenvolvimento.
Carta Maior
Tiago Thuin e Clarissa Pont
BRASÍLIA – O professor James Galbraith, diretor do Projeto Desigualdade na Universidade do Texas-Austin, não é apenas o herdeiro de um nome ilustre (seu pai, John K. Galbraith, foi um dos economistas mais influentes nos EUA do pós-guerra). Ele foi um dos primeiros a prever a atual crise econômica, ainda em 2004, e por isso tem recebido cada vez mais atenção da imprensa e do governo americanos. Seu livro “O Estado Predador: como os conservadores abandonaram o livre mercado e por que os liberais também deveriam fazê-lo,” está entre os 3 mais vendidos na categoria “governo” da Amazon.com.
No Brasil para participar do Seminário Internacional sobre Desenvolvimento do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Galbraith – que irá participar de um painel sobre o papel do estado no pós crise – concedeu entrevista à Carta Maior, na qual explica que a crise, gestada pelas políticas irresponsáveis de desregulamentação bancária, está longe de ser superada – e que o caminho de sua superação passa antes pela ajuda à população em geral, principalmente aos mais pobres, do que pela ajuda a bancos e grandes empresas.
Carta Maior – Você acredita que a ajuda econômica prevista pelo Congresso americano terá sucesso?
James Galbraith – Acho que as duas – o pacote de estímulo e o socorro aos bancos – são complementares. O estímulo econômico depende do socorro bancário, e o problema deste é que a tática, a visão básica por trás dele, que é de que comprar ações, oferecer capital aos bancos para fazer com que eles comecem a emprestar novamente, está errada. A razão pela qual os bancos não estão concedendo crédito é que há uma escassez de boas oportunidades de investimento, ou de tomadores de empréstimo com garantias apropriadas, com imóveis valorizados ou outras garantias.
E o problema com os bancos é que a carteria de ativos deles vale muito menos do que eles pensavam que valia. É uma insolvência maciça e, até que se lide com isso, não haverá reconstrução do sistema financeiro.
CM – Aqui no Brasil, apesar de os bancos estarem numa situação bem mais sólida do que nos EUA, medidas de estímulo ao crédito, de capitalização dos bancos, foram passadas. Você acredita que essas medidas terão efeito no sentido de estimular os bancos a fornecerem crédito?
JG – Não estou familiarizado com a situação específica do Brasil, mas acho que a mesma idéia geral [mencionada no caso dos EUA] se aplica. O crédito carece de uma comunidade tomadora de crédito forte, que tenha condições de tomar emprestado, e é isso que simplesmente não está presente numa crise.
CM – Você escreveu um livro recentemente, o Estado Predador, no qual advoga pela renúncia às práticas neoliberais. A sua opinião é que a intervenção do estado na economia veio para ficar, ou é só uma reação temporária de pânico?
JG – Veja bem, o principal argumento de meu livro é que nos EUA – e, creio, em toda a parte – o ideal neoliberal já havia sido abandonado. O governo conservador foi um governo intervencionista – praticando a intervenção em prol de uma base estreita, de apadrinhados nos setores de energia, militar, mineiro, nas grandes mídias, no setor financeiro. Grupos muito pequenos mas muito poderosos na prática formaram e controlaram o governo por um longo período, e o resultado – especificamente no setor financeiro – foi um desmoronamento completo da confiança da parte da comunidade como um todo na segurança do sistema, nas regras que garantiam a segurança do sistema. E é essa a causa da explosão de empréstimos subprime cada vez mais arriscados, que por sua vez envenenou toda a estrutura de ativos dos bancos e toda a economia.
CM – O senhor crê que uma regulação financeira mas severa, nos moldes daquela imposta nos EUA de 1933 em diante, será imposta a partir de agora nos EUA? E globalmente?
JG – Sim, e têm que ser impostas em nível global, transnacional, e os mecanismos que vão pôr isso em prática já estão aí. A questão que proponho, então, é que é prematuro pensar na recuperação da economia financeira apenas a partir de um sistema regulatório melhorado. O problema jaz nas próprias instituições, que devem ser reconstruídas, com cujos ativos envenenados temos que lidar.
CM – O senhor é diretor do Departamento de Estudos sobre a Desigualdade da Universidade do Texas-Austin. Desde o começo da crise o enfrentamento da desigualdade, que era discutido em foros internacionais e por governos até então, ficou em segundo plano. Tem havido uma opinião de que esse é um assunto com o qual não se pode preocupar antes de superada a crise. O senhor acha que essa atitude é sensata, ou necessária?
JG – Ora, como se luta contra a pobreza, contra a desigualdade? Justamente através da expansão da rede de segurança social. Na Grande Depressão de 29, praticamente toda iniciativa de maior porte se tratou de um meio de reduzir o risco, distribuindo ele e aumentando o padrão de vida na base da pirâmide econômica. Garantias de depósitos, o sistema de assistência e segurança social, as medidas para estabilizar a indústria e a agricultura, tudo foi nesse sentido, e foi assim que os EUA conseguiram sair da pior fase da crise econômica.
Lidar com a pobreza, na verdade, é provavelmente a forma mais eficaz de se lidar com uma crise econômica, muito diferente e muito mais eficaz do que a estratégia de se dar dinheiro aos bancos ou grandes empresas. É assim que você restaura os fluxos de renda, de capital, e a capacidade de tomada de empréstimo da população e do sistema como um todo.
CM – Há uma opinião, algo difundida, de que o Brasil está melhor situado do que outros para enfrentar a crise, e poderia até superá-la no curto prazo. Qual a sua posição quanto a isso?
JG – Bem, como já disse, não estou familiarizado com a situação brasileira. Mas acho razoável dizer que o Brasil está numa posição sólida, comparado a alguns países – porém nenhum pedaço da comunidade global vai ser poupado dos efeitos da atual crise. E por isso é parte da responsabilidade dos países maiores e mais sólidos socorrer os outros, se quiserem ver uma solução efetiva da crise global. Não sei dizer se assumirão essa responsabilidade – isso é uma questão política.
CM – Essa é uma crise que vai além da economia. Também é uma crise política – quais as razões políticas que levaram à crise, no seu entendimento?
JG – Passamos, nos EUA, por um período de desgoverno. Um abandono da responsabilidade pública, da regulação financeira séria. Essa é a raiz da crise, das hipotecas subprime, dos instrumentos baseados nesses derivativos, profundamente embrenhados no setor financeiro; essas coisas não teriam acontecido com uma regulação efetiva, só aconteceram porque o Executivo favoreceu seus cupinchas e largou de mão as responsabilidades públicas reconhecidas durante seis décadas.
CM – De volta à questão da desigualdade: na última década do século 20, ela cresceu em todo o mundo, tanto em países que experimentaram recessões quanto em países que cresciam de maneira explosiva. O senhor vê nesta crise uma oportunidade, ou um risco de que a desigualdade global aumente ainda mais?
JG – Bem, em qualquer crise os pobres vão ser mais afetados do que os ricos. Mas uma diferença pode se ver nesta crise em particular: os setores mais atingidos foram os setores financeiros dos países mais ricos. Mas ao mesmo tempo você verá, por exemplo, uma disparidade crescente entre as Europas Oriental e Ocidental, devido à maneira como as moedas da Europa Central e Oriental eram lastreadas com libras e euros. E uma das implicações disso é que além de ser apropriado que os países reforcem suas próprias redes de segurança social, em economias regionalmente integradas, ou que almejem a integração os países mais fortes devem tomar medidas que reforcem esse tipo de política para a região como um todo.