O Estatuto da Igualdade Racial completou cinco anos de existência nesta segunda-feira (20), sob avaliação generalizada de militantes do movimento negro de que é preciso reformar o documento.
“O estatuto ainda está no campo do avanço simbólico. Estabeleceu importantes diretrizes e direitos sociais para o povo negro. Mas o fato de ‘recomendar’ e não ‘determinar’ ações e políticas públicas reduziu muito a incidência que ele poderia ter na realidade da população negra”, avaliou o professor e militante do Movimento Negro, Douglas Belchior.
O estatuto foi elaborado a partir de intensa mobilização do movimento negro, com apoio da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, criada no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O documento apresenta diretrizes nas áreas de saúde, educação, cultura, trabalho, acesso à terra e liberdade religiosa, com o objetivo de alcançar a igualdade de oportunidades e direitos entre negros e brancos, bem como combater o racismo.
No entanto, cinco anos depois, nem mesmo o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, previsto no plano, foi criado.
De acordo com a IBGE, 52,9% da população brasileira é negra – contados os que se declararam como pretos ou pardos, em 2013, na Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílios (Pnad). Porém, tal dado não se reflete em outros espaços. Nas eleições de 2014, 80% dos 513 deputados federais eleitos eram brancos. Na televisão, somente 15% dos atores em papéis de destaque são negros.
Ao mesmo tempo, os negros ainda são vítimas preferenciais da violência. “Infelizmente, no tempo de vigência do estatuto, esta é uma situação que só piorou”, ressaltou Belchior. Segundo o Mapa da Violência, 26.854 jovens entre 15 e 29 foram vítimas de homicídio, em 2010. Do total, 74,6% eram negros. Em 2012, o mesmo mapa identificou 30 mil jovens assassinados. E 77% das vítimas eram negras. A proporção é de, pelo menos, três negros assassinados para cada branco.
Para Belchior, apesar dos problemas, é preciso reconhecer que o estatuto foi a base para o estabelecimento da política de cotas raciais e de ações afirmativas em várias cidades. No entanto, mesmo este não foi um processo universal.
“Isso só foi efetivo onde há governos e instituições comprometidos com o enfrentamento do racismo. No geral, temos dificuldade em ver efetivada uma lei com obrigações, como a (Lei federal 10.639, de 2003) que determinou o ensino de história da África nas escolas públicas. Muitos municípios não a cumprem e nada acontece. Imagine uma lei que não tem obrigações”, ponderou.
A política de cotas tem sido adotada em maior escala no serviço público federal e nas instituições federais de ensino superior. Mas a Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, ainda não aderiu ao sistema de cotas raciais. Outras sete universidades estaduais, das 38 existentes, também não adotam a medida.
Isso traz graves consequências à inserção dos negros nas universidades. De acordo com o Censo da Educação Superior de 2013, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – Anísio Teixeira (Inep), de todos os estudantes matriculados nas universidades públicas e particulares em âmbito nacional, apenas 3% eram pretos. Outros 12% declararam-se pardos.
Para o Frei David dos Santos, que coordena os cursinhos pré-vestibular para jovens na Educafro, a exclusão dos negros continua galopante no ensino superior. “Se avaliar concretamente o que o estatuto mudou no Brasil você cai de costas no chão. Não mudou quase nada. Não chega a 1% o número de professores universitários negros no Brasil. Fica mais grave quando observamos o número de alunos negros que recebe bolsas de estudo para doutorado: Não chega a 2%”, afirmou.
Para ele, é urgente uma reforma no estatuto, que devolva o poder transformador que o texto tinha antes de entrar no Congresso Nacional. “O estatuto era e é a compensação por 380 anos de escravidão negra no Brasil. Mas o texto final é quase totalmente sem compromisso, devido às mudanças realizadas na Câmara e no Senado”, criticou.
Segundo frei David, o texto do estatuto acabou por desautorizar ações que buscavam equiparar a presença dos negros em determinados espaços com a realidade social. O frei citou dois Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) que estavam em negociação entre o Ministério Público paulista com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a São Paulo Fashion Week, para garantir a inclusão de negros em proporção igualitária. “Ambos foram abandonados quando a lei foi aprovada porque não foi mantida a determinação, apenas se recomenda que haja equidade”, salientou.
O estatuto tem recomendações específicas também em relação ao combate à intolerância religiosa e no acesso à terra, incluindo aqui políticas para garantia da manutenção e do desenvolvimento das comunidades quilombolas. No entanto, segundo representantes dessas populações, o texto é letra morta para ambas.
Segundo o estatuto, as comunidades quilombolas deviam receber incentivos específicos para a garantia do direito à saúde e à educação, reconhecimento da propriedade definitiva da terra, além de assistência técnica e linhas especiais de financiamento público, destinados à realização de suas atividades produtivas e de infraestrutura.
“Os governos têm estado distantes de nós. Nada do que foi proposto acabou efetivado e poucas comunidades quilombolas podem dizer que tiveram alguma melhora nos últimos cinco anos”, afirmou o presidente de honra da Associação Quilombo Caçandoca, Antônio dos Santos.
Líder de uma comunidade onde vivem 700 descendentes quilombolas, Santos também defendeu que o estatuto precisa ser reformado urgentemente. “É preciso que se reconheça de verdade a dívida do Brasil com o povo negro. Não basta escrever um documento, é preciso implementar as políticas de saúde, educação e desenvolvimento. E sem desconstruir a cultura de cada população”, afirmou.
Situação semelhante à da população negra que vive e trabalha no campo. “O estatuto é um avanço, mas não chega na ponta, no cidadão comum. O negro rural continua invisível e sem acesso às políticas públicas para se desenvolver e viver com dignidade”, afirmou o secretário-geral da Federação da Agricultura Familiar (FAF-CUT), Elvio Mota. Para ele, o documento foi mutilado durante a tramitação no Congresso. “O estatuto tem corpo, braços e pernas, mas não tem cabeça”.
Mota, que também é babalorixá na comunidade de terreiro Ylê Axé de Yansã, comentou ainda a situação vivida pelos religiosos de Candomblé e Umbanda, que, segundo ele, vivem o pior momento desde a redemocratização. “Casas de axé têm sido destruídas em todo o Brasil. Pessoas têm sido atacadas. E nada tem sido feito para impedir essa violência”, lamentou. Novamente, o estatuto tem uma seção dedicada especificamente à liberdade de cultos de matriz africana, mas nenhuma determinação sobre o que fazer. Apenas recomendações e garantias.
Mota faz coro aos que defendem a reformulação do Estatuto da Igualdade Racial. “A lei deve determinar, não pode pedir. E precisa ter muito claro os recursos para que sua aplicação possa ser efetivada. Precisamos de um estatuto corajoso, que contenha as bases para mudar as estruturas da sociedade brasileira, que hoje se alimenta do racismo”, concluiu.
A Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Nilma Lino Gomes, avaliou nesta segunda-feira (20), que são positivos esses cinco anos de implementação do estatuto.
“Acredito que o que não foi incluído não compromete a essência, a integridade do estatuto. Para tornar o estatuto mais efetivo precisamos seguir na regulamentação de pontos específicos, garantindo a intersetorialidade das políticas de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo em todos os ministérios.”
A ministra afirmou que é compromisso da atual gestão implementar o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial. “Houve um tempo de maturação necessário, de estabelecer diálogo com os estados e municípios para colocar a ideia em prática, e hoje, temos quatro estados e 17 municípios no Sinapir. Diversos outros já estão com a documentação pronta aguardando a tramitação para fazerem parte”, afirmou, ressaltando que a ação não depende apenas da secretaria. “Os governos estaduais e municipais precisam ter um órgão de promoção da igualdade racial e um conselho (sociedade civil organizada)”.
Sobre uma possível reforma no estatuto, a ministra defendeu que o foco de sua gestão é em “regulamentar os instrumentos constantes do plano e em trabalhar para garantir o cumprimento dos direitos estabelecidos no estatuto”, reconhecendo que para aprovar a lei “foi necessário negociar alguns pontos”.
A ministra destacou ainda duas dificuldades no enfrentamento do racismo no Brasil. “Nosso racismo é peculiar porque há uma tentativa de negar que ele existe. Crimes raciais são justificados de forma a fazer de conta que não são crimes. Há ainda uma subnotificação muito grande dos crimes raciais. A Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial tem registrado cada vez mais denúncias, à medida em que as pessoas tomam conhecimento da ferramenta”, argumentou Nilma.