Por Sérgio Braga Vilas Boas*
Andrew Jackson, sétimo presidente eleito dos EUA, governou aquela nação de março de 1829 a março de 1837. Jackson notabilizou-se por dar razoável significado prático ao ideário democrático dos fundadores do seu país, numa espécie de resgate, entre eles Thomas Jefferson. Mauro Santayana, um dos mestres do jornalismo brasileiro, costuma citá-lo quando trata de questões como as que trataremos aqui. Arthur Schlesinger Jr., escritor e historiador norte-americano, que inclusive foi assessor de John F. Kennedy, lido também por indicação de Santayana, inicia o prólogo de seu livro clássico sobre os primeiros decênios da República Estadunidense, “A Era de Jackson” publicado em 1944, em plena guerra, com frase atualíssima: ”A crise mundial deu nova urgência à questão sobre o significado da democracia”. O que é mesmo democracia? Será democrático um sistema no qual as grandes corporações ”fazem” o poder político?
Ao levar a república às massas, Jackson fez a participação política avançar para o Oeste e a tornou do povo, ao libertá-la das oligarquias da Nova Inglaterra. Tendo nascido fora das antigas colônias, Jackson não tinha compromissos com seus mitos. Por isso, combateu, com coragem, os grandes banqueiros e rentistas, em favor dos pequenos fazendeiros, artesãos e modestos empreendedores. Ele não tinha pretensões além das democráticas e republicanas. De lá pra cá houve mudanças bastante significativas, que ao imaginar Thomas Jefferson enquanto Embaixador na França em 1787, sendo co-criador da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na seqüência da Revolução Francesa de 1789, creio que seu túmulo deve estar revirado.
André Gorz, austríaco radicado na França, cientista social e filósofo, em suas três últimas obras traduzidas para o português, Metamorfoses do Trabalho (Annablume, 2003), Miséria do presente Riqueza do possível (Annablume, 2004) e O Imaterial (Annablume, 2005), faz sagaz crítica à razão econômica das sociedades, e ao que chama de “utopia industrialista”, que prometeu-nos que o desenvolvimento das forças produtivas e a expansão da esfera econômica liberariam a humanidade da penúria, da injustiça e do mal-estar; que fariam do trabalho a atividade autocriativa na qual o aperfeiçoamento incomparavelmente único de cada um, seria reconhecido como parte da emancipação de todos, numa espécie de “direito e dever” ao mesmo tempo. Tudo isso, porém sem abrir mão da privatização e/ou elitização dos valores fundamentais ao desenvolvimento das sociedades e da democracia: Conhecimento, justiça (no sentido social e jurídico) e crédito.
Em sua obra “A Sociedade contra o Social” (Companhia das Letras, 2000), Renato Janine Ribeiro, cientista social, professor de ética e filosofia da PUC-SP, destaca a secular dicotomia entre a “a sociedade” e o “social”, e que entre elas se trava uma luta sem tréguas. Segundo Janine Ribeiro, faltam, é claro, razões para justificar a cisão exposta, a esquizofrenia entre social e sociedade. Faltam argumentos para sustentar o formato do que os conservadores chamam de “a sociedade”. Por que aceitar tão facilmente que a forma por excelência de manifestar-se a voz coletiva seja a das elites, que as vozes a considerar sejam as dos “agentes econômicos”? Por que aceitar que se exclua o mundo da política, com seu pressuposto democrático da igualdade? E por que, na economia, supor que só tenha racionalidade para agir quem detém o capital?
O incansável Altamiro Borges, jornalista e militante político de esquerda, em seu último livro, “Encruzilhadas do Sindicalismo” (Anita Garibaldi, 2005) traz-nos dados estarrecedores. Segundo esses dados colhidos por ele, tendo como fonte os mais diversos órgãos (OCDE, UNCTAD, Banco Mundial, etc.), vivemos um mundo em que 0,5% da população – alguns ricaços espalhados – amealharam para si no ano passado US$ 28,8 trilhões, enquanto 2,8 bilhões de pessoas ao redor do planeta vegetam criminosamente com menos de US$ 2,00 ao dia; 924 milhões de pessoas moram em favelas sem água potável e saneamento; a cada minuto nascem seis novos pobres e desafortunados na América Latina; 227 milhões de latino americanos vivem abaixo da linha de pobreza, dos quais são 177 milhões são jovens e crianças sem qualquer perspectiva de futuro. Numa divisão de mundo em que há os que “têm” e os que “não têm”, direito a viver, como pode haver assim a democracia?
Pois bem, o sentido de democracia vai muito mais além da tese simplória e desmedida das eleições periódicas, ou até mesmo da liberdade de opinião. Democracia é algo magnânimo em cuja definição estão intrínsecos valores que na prática são rejeitados pela “sociedade”.
Um dos pilares da construção do verdadeiro estado democrático de direito e do ideal republicano, é a proletarização do crédito, como o fez Jackson. A capacidade de produzir é o grande elo que liga o homem à utilidade e o transforma em ser social e socialmente pleno, lhe dá vida além do caráter biológico, e o habilita a intervir enquanto cidadão.
E a mim me parece ainda, que soluções anacrônicas são engendradas inclusive, no seio de instituições como partidos políticos e movimentos sociais, quando não vão além do puro protesto, como se pudéssemos combater a racionalidade econômica tal qual posta em marcha simplesmente negando-a, ou fazendo proposições para aquém do espaço e tempo atuais, quando o elemento tecnológico era só objetivado em máquinas, e trabalho e valor, como duas das três categorias do capital podiam ser mensurados apenas matematicamente. Hoje a tecnologia, ousaria dizer, encerra em si própria um novo objeto de produção e se autoprocria através dos softwares, e, sem embargo da preservação de princípios fundamentais, novas respostas têm de ser dadas.
Entendo que o Brasil está ainda longe da firmeza de Jackson ou de apresentar soluções para o diagnóstico de André Gorz, Janine Ribeiro e Altamiro Borges. É evidente a timidez do Governo brasileiro ao questionar a contemporaneidade, como se nada mais se pudesse fazer a não ser o que parece óbvio. O lugar comum continua senhor das ações e as forças sociais padecem de um umbiguismo estarrecedor.
Forças democráticas e populares subiram a rampa do planalto, e no que se refere ao papel que deve desempenhar o sistema financeiro, mergulharam nas correntes migratórias sem qualquer debate com a sociedade. Como se crédito e a sua democratização ocupassem um lugar obscuro, e a sua importância estivesse reduzida à distribuição direta ao consumo, a exibição do cartão magnético enquanto troféu da bancarização tornou-se o seu fim.
O governo brasileiro deve incluir na sua lista de itens que levam à reconstrução do estado, totalmente devastado por Fernando Henrique Cardoso, que proclamou seu fim, sua caducidade, a regulamentação do sistema financeiro tendo como princípio básico que ele deve servir ao povo, ao estado, e não se servir deles. Banco é concessão pública. Há interesse público em jogo. Há empregos, renda, direito à vida em jogo! O Brasil precisa de um Banco Central em que o estado lhe dite regras e não o inverso, assim como acontece secularmente nos EUA, desde Jackson.
O país, a sociedade, precisa se mover e participar efetivamente desse momento onde a exacerbação da concentração do sistema financeiro representa um perigo real e imediato à economia doméstica. O acordo de Basiléia II, criado para blindar a banca internacional acerca dos riscos a que se expunham ao promover créditos internacionais aos países pobres, trouxe para os ares tupiniquins uma realidade cruel e predatória: a busca histérica por alavancagem que levará fatalmente o país do oligopólio ao monopólio privado do sistema. Ou melhor, sairemos do ruim para o péssimo. Desse modo cabe redimensionar não só o papel dos bancos públicos que ainda restam, além de preservá-los, mas o papel do sistema financeiro nacional. Caso contrário mandaremos a república às favas e feriremos de morte a democracia.
Sabemos que o mercado de capitais representa o ambiente onde as grandes corporações navegam em busca de financiamento. Todavia, e o resto? E as pequenas e médias empresas que empregam mais de 50% do contingente de assalariados do país? E os pequenos, médios e micro produtores rurais? Diferente dos EUA, onde as megafusões e incorporações tiveram pouca influência na quantidade e no direcionamento do crédito destinada à economia real, pela característica e regulamentação do seu sistema financeiro, no Brasil, salvar-se-á quem puder.
Por fim, num país onde é permitida a existência de sindicatos patronais contrariando a célebre frase de Smith, que disse ser conspiração a reunião de mais de um capitalista; que o presidente do banco central faz reuniões periódicas com banqueiros privados; que funcionários de alto escalão daquela autarquia ao se desligarem dela já contam com polpudos empregos oferecidos pela banca, ai de nós! Creio que o tempo urge, contudo sempre há tempo quando se quer tê-lo. Ainda restam três anos e alguns meses.
* Sérgio Braga é secretário de Finanças da Contraf-CUT