Para tribunais, excesso de horas extras gera danos existenciais

Arthur Rosa
Valor Econômico | De São Paulo

Horas extras em excesso. Anos e anos sem férias. A falta de tempo para a família, lazer e estudo tem levado trabalhadores à Justiça para pedir indenização por um novo tipo de dano: o existencial. Normalmente negado em primeira instância, o pedido vem sendo aceito em tribunais regionais do trabalho (TRTs) e há pelo menos um precedente do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

No TRT do Rio Grande do Sul, duas turmas já reconheceram o direito a ex-empregados do Walmart, obrigados a cumprir longas jornadas de trabalho. Para o relator de um dos processos, o juiz convocado Raul Zoratto Sanvicente, da 2ª Turma, “há dano existencial quando a prática de jornada excessiva por longo período impõe ao empregado um novo e prejudicial estilo de vida, com privação de direitos de personalidade, como o direito ao lazer, à instrução, à convivência familiar”.

No caso, um chefe de setor alegou que, durante pouco mais de cinco anos – entre junho de 2004 e outubro de 2009 -, realizou por todos os dias, à exceção de dois domingos por mês, jornada de 13 horas, chegando ao trabalho às sete horas da manhã e saindo somente por volta das oito horas da noite. Em primeira instância, o pedido foi indeferido. O juiz entendeu que o fato geraria direito apenas à reparação material, ou seja, o pagamento das horas trabalhadas.

No TRT, porém, o relator considerou que a prática reiterada da rede de supermercados deveria ser coibida por “lesão ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”. “Entender que a prática reiterada (como é público e notório no caso da reclamada) de obrigar aos empregados o cumprimento de jornadas diárias além do mínimo permitido em lei deve gerar apenas o pagamento de horas extras é atribuir um olhar monetarista, inadmissível em se tratando de direitos sociais”, diz em seu voto.

Quanto ao valor da indenização, o relator considerou que deveria atender “também o caráter pedagógico e ter em conta o porte do agente”. Assim, estabeleceu os danos existenciais em R$ 60 mil. “Sua vida no período no qual trabalhou para a reclamada resumia-se em alimentar-se, dormir e trabalhar”, afirma Sanvicente.

Em outro caso envolvendo o Walmart, porém, o valor estipulado foi menor, de R$ 10 mil. No processo analisado pela 1ª Turma do TRT gaúcho, a trabalhadora alegou que a jornada de 12 horas em seis dias por semana, com intervalo de 30 minutos, deixou pouco tempo para os compromissos particulares, dentre eles o convívio familiar.

Por meio de nota, o Walmart Brasil informa “que cumpre integralmente a legislação trabalhista em todas as localidades onde atua e que preza pelo respeito a todos os seus funcionários”. A companhia já recorreu das decisões.

No Paraná, a Spaipa S.A. Indústria Brasileira de Bebidas, fabricante e distribuidor Coca-Cola, foi condenada em segunda instância a pagar indenização de R$ 10 mil a um motorista, obrigado a fazer horas extras além do permitido por lei (duas horas). Ele argumentou que “a rotina diária, premida por uma longa e exaustiva jornada de trabalho, frustraram seu projeto de vida, que era voltar a estudar e montar seu próprio negócio”.

A relatora do caso, desembargador Ana Carolina Zaina, da 2ª Turma do TRT do Paraná, acatou o argumento do autor. Para ela, a excessiva carga de trabalho foi um “empecilho ao livre desenvolvimento do projeto de vida do trabalhador e de suas relações sociais”. Além dos danos existenciais, o trabalhador obteve danos morais de R$ 5 mil por ter sofrido dois assaltos. Por nota, a Spaipa informa que irá recorrer da decisão.

Em seu voto, a magistrada aproveitou ainda para explicar as diferença entre o dano moral e o existencial. “O dano moral se refere ao sentimento da vítima, de modo que sua dimensão é subjetiva e existe. Por outro lado, o dano existencial diz respeito ‘in re ipsa’ às alterações prejudiciais no cotidiano do trabalhador, quanto ao seu projeto de vida e suas relações sociais, de modo que sua constatação é objetiva.”

“É um direito de difícil comprovação”, diz o advogado Daniel Chiode, do escritório Gasparini, De Cresci e Nogueira de Lima, que acompanha mais de cem ações contra empresas com pedidos similares. “Não perdemos em nenhuma. Não é um direito fácil de emplacar.”

Para a advogada Dânia Fiorin Longhi, do Fiorin Longhi Sociedade de Advogados, os danos existenciais também têm um fim pedagógico, para evitar que o empregador continue a agir dessa forma com seus empregados. “O homem é um ser social e tem o direito a manter relações amorosas, de amizade e familiares. Ter uma vida fora do trabalho”, afirma.

A função “pedagógico-punitiva” foi levada em consideração pelo TST, que concedeu indenização de R$ 25 mil a uma economista de Campo Grande que ficou dez anos sem usufruir dos períodos de férias. Ela teve vínculo de emprego reconhecido com a Caixa de Assistência dos Servidores do Estado de Mato Grosso do Sul (Cassems). Para a 1ª Turma, “a lesão decorrente da conduta patronal ilícita que impede o empregado de usufruir das diversas formas de relações sociais fora do ambiente de trabalho (familiares, atividades recreativas e extralaborais) viola o direito da personalidade do trabalhador e constitui o chamado dano existencial”. O caso já transitou em julgado.

Por nota, a Cassems informa que, com o reconhecimento do vínculo, “foram desconsideradas as peculiaridades da forma de contratação originária (autônoma), como a ausência de horário fixo para o trabalho”. De acordo com a entidade, a economista “poderia se ausentar por períodos por si mesma estabelecidos, seja para descanso como para viagens e passeios”.

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