O debate sobre a financeirização da economia e implicações políticas

Ladislau Dowbor (*)
Agência Carta Maior

Há um debate que não pode mais esperar: como recuperar os imensos recursos acumulados e parados em fortunas financeiras, girando em atividades especulativas estéreis, para financiar a inclusão produtiva, a reconversão energética, os desequilíbrios sociais? O problema está além da injustiça flagrante que leva a que se acumulem fortunas sem a contrapartida produtiva correspondente. Trata-se da deformação do próprio sistema de acumulação capitalista, e da sua principal base de legitimação.

A visão herdada era que à riqueza do capitalista correspondia uma iniciativa de empreendedor, gerando produto, emprego e enriquecimento da sociedade, ainda que de forma desigual. Com a generalização do desvio das nossas poupanças para aplicações financeiras, tanto das fortunas dos mais ricos como das poupanças da população em geral, para as mãos de intermediários financeiros, o que era mais valia apropriada no processo produtivo se transformou em sistema especulativo planetário. O capitalismo produtivo se desloca para um capitalismo de rentistas.

Podemos trabalhar com três eixos de análise. Primeiro, as mudanças em termos do capitalismo financeiro global; segundo, como estas dinâmicas afetam o Brasil; terceiro, que alternativas estão surgindo no horizonte.

1 – A finança global

Os recursos financeiros são geridos em nível global, mas os sistemas de regulação são fragmentados em 192 países com legislações e capacidade de controle muito diversificadas. Na ausência de um sistema multilateral minimamente adequado, e com a desconstrução do marco jurídico (Glass-Steagall Act) a partir dos anos 1980, gerou-se um espaço sem governo. A compreensão dos mecanismos melhorou muito. Os aportes de Chesnais, Galbraith e outros foram reforçados por análises de personagens do próprio sistema: Paul Krugman, Joseph Stiglitz, Marcel Morin e muitos outros. Hoje temos como reunir e sistematizar as visões. O trabalho de Thomas Piketty é aqui de uma grande ajuda. Temos um razoável corpo teórico.

Em outro nível, houve a partir da crise de 2008 um reforço radical, ainda que muito insuficiente, dos dados empíricos. Um marco importante é a pesquisa sobre a rede global de controle corporativo, do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica, que mostrou que no universo corporativo mundial uma rede de 737 grupos controla 80% do mundo corporativo, dos quais um núcleo mais restrito de 137 grupos controla 40%, sendo que 75% deles são grupos financeiros. Ou seja, o mundo corporativo mundial é hoje controlado por gente que se conhece, que se encontra no campo de golfe. Tal nível de concentração dispensa qualquer teoria conspiratória. Pode-se qualificar o sistema de várias formas, mas não é mais um mecanismo de mercado.

Outro reforço muito significativo é o estudo dos fundos alocados em paraísos fiscais. A pesquisa do Tax Justice Network, coordenada por James Henry, mostra que o estoque de recursos é da ordem de um terço a metade do PIB mundial, em torno de 21-32 trilhões de dólares. O Economist arredonda isto para 20 trilhões, o Working for the Few da OXFAM-UK trabalha com 18 trilhões, e o ICIJ (International Consortium of Investigative Journalists) está gradualmente divulgando os nomes, montantes e principais operações destes fundos.

O Brasil, segundo o TJN, participaria com 520 bilhões de dólares, cerca de um quarto do PIB. São recursos que desorganizam o sistema fiscal planetário, acobertam lavagem de dinheiro, financiam tráfico de armas, e asseguram a multiplicação cumulativa de fortunas. Segundo o Economist, a gestão é assegurada essencialmente no Estado de Delaware nos Estados Unidos, em Miami e em Londres. As diversas pesquisas convergem. Gerou-se um capitalismo no mínimo cinzento, e em todo caso de legalidade duvidosa, quando não simplesmente criminoso. Não é mecanismo de mercado.

Muito significativa também é a formação, em paralelo à financeirização, de um mundo de especulação comercial que nela navega. Basicamente, uma quinzena de grupos controla a quase totalidade do comércio mundial de grãos, energia, minerais metálicos e não metálicos, ou seja, o sangue da economia mundial. Joshua Shneyer, no The Trillion Dollar Club: Commodity Traders, apresenta os dados básicos destes grupos, aliás com forte presença no Brasil, e a sua gigantesca força planetária, ainda que com nomes que pouco conhecemos como Black Rock. É importante lembrar que o mercado de futuros onde se movimentam estas finanças têm derivativos emitidos (outstanding derivatives) de mais de 600 trilhões de dólares, cerca de 8 vezes o PIB mundial (dados do BIS de Basileia).

Em terceiro nível, temos de observar a complexidade de mecanismos planetários de gestão dos recursos financeiros. A IEA (International Energy Agency) das Nações Unidas elaborou um manual só com a descrição dos termos e dos mecanismos de derivativos utilizados pelo sistema mundial de especulação. Frente à imagem surrealista que ensinamos, de atores que competem através de mecanismos de mercado, “e que o melhor vença”, temos de explicitar como funcionam mecanismos básicos como estocagem especulativa, mispricing¸alavancagem, arbitragem, high frequency trading e outros mecanismos hoje opacos e incompreendidos.

Finalmente, temos hoje uma enxurrada de processos e condenações dos principais atores mundiais de intermediação financeira. Os mecanismos mais significativos, como a manipulação da Libor (praticamente todos os grandes grupos financeiros mundiais), a fraude com seguros de cartões de crédito, a lavagem de dinheiro em grande escala, a gestão de fundos e financiamento de operações ilegais, a cartelização e outros procedimentos, hoje amplamente descritos até no Financial Times e publicações online, precisam ser descritos e sistematizados, para ampliar a compreensão dos principais tipos de ilegalidades perpetradas.

Em outros termos, um eixo de trabalho é a formação de uma rede colaborativa de pesquisa que ajude a tornar os mecanismos minimamente compreensíveis para formadores de opinião e pesquisadores não especializados na área. Precisamos ampliar a base de conhecimento e de conhecedores.

2 – Os impactos e mecanismos no Brasil

Os grandes grupos financeiros no Brasil participam plenamente deste processo mundial, mas com mecanismos específicos. A tendência básica, que é de migração das finanças do fomento produtivo para atividades especulativas e ganhos financeiros em geral, que caracteriza a evolução mundial, se reproduz aqui, ainda que de maneira diferenciada.

Um mecanismo central neste processo é a forma como o cartel dos grandes bancos nacionais, e os internacionais que aqui funcionam, passaram a utilizar a dívida pública como mecanismo de transferência, através da taxa Selic elevada, dos impostos da população para os intermediários financeiros. São transferências da ordem de grandeza de 150 a 200 bilhões de reais por ano. Amir Khair tem sido uma fonte preciosa de análise desta dinâmica, justificada erroneamente como combate à inflação.

Um segundo mecanismo consiste na cobrança de juros astronômicos ao tomador final de crédito. A comparação com os juros cobrados no resto do mundo mostra que no Brasil se cobra ao mês o que na Europa, por exemplo, se cobra ao ano. O estudo comparado de taxas de juros pode aqui ser precioso, pois são dados acessíveis e compreensíveis pela população, frequentemente estrangulada nos juros dos cartões de crédito (16% ao ano nos EUA, 238% no Brasil), no cheque especial ou outros produtos. Os juros permitem que um grupo planetário como Santander tire do Brasil entre 25% e 30% do seu lucro mundial.

Muito importante é organizar a informação sobre a principal justificativa quanto à elevada taxa Selic e juros ao tomador final, que é a de que se está protegendo a população da inflação. Os argumentos de Paul Singer (os juros pelo contrário estão encarecendo os produtos), de Amir Khair (a concorrência internacional da economia aberta dificulta a elevação dos preços) e outros devem ser explicitados. É importante aqui lembrar que entre 1993 e 1995 as 44 economias do mundo que tinham hiperinflações como o Brasil (Israel, Argentina, México etc.) conseguiram vencê-las, com diversos mecanismos, simplesmente porque na globalização financeira não se pode operar com moedas conversíveis.

A ideia geral seria organizarmos a informação sobre os principais mecanismos especulativos adotados, sobre a ilegalidade do cartel, e sobre os impactos diferenciados para a população ao adquirirem os diversos produtos financeiros. Fez-se escândalo com a CPMF, que cobrava um terço de um por cento essencialmente sobre quem faz transações financeiras, enquanto a população não entende que qualquer pequeno comércio, ao vender no cartão, tem de incorporar algo como 6% do valor para cobrir o custo financeiro cobrado pelo banco, sobre a grande maioria das operações comerciais do país, uma punção drástica dos recursos da população. E não é para financiar a saúde.

O importante é criar um processo colaborativo de pesquisa, publicação e divulgação do entrave que a economia financeira gera no país. Na linha do estudo da produtividade relativa de diversos usos de recursos (quanto contribui para o PIB um real aplicado em educação, no serviço da dívida etc.) coordenado na época por Márcio Pochmann, o eixo central poderia ser a explicitação dos impactos da esterilização da poupança e da não funcionalidade do sistema financeiro comercial.

3 – As alternativas e recuperação do controle

Temos hoje inúmeras iniciativas pontuais, e um grande sentimento de impotência em termos sistêmicos. Em termos de regulação em geral, temos nos Estados Unidos a aprovação da lei Dodd-Frank, frágil tentativa de recuperar as rédeas do sistema especulativo, um tipo de volta diluída à antiga lei Glass-Steagall, e esforços correspondentes na UE e na Inglaterra. A dimensão das ferramentas de regulação disponíveis, em estudo ou em negociação em diversas partes do mundo são muito importantes para nós, pois o sistema brasileiro não é estanque. E o Brasil tem peso, como se constatou por exemplo no quadro do recente acordo entre BRICS e iniciativas regionais. O conceito de delinking de Samir Amin pode aqui ser útil, ainda que flexibilizado.

Temos evidentemente também o imenso potencial de aproveitamento do setor financeiro público, responsável no Brasil por cerca de metade do crédito, como vetor de introdução de mecanismos de ruptura dos juros cartelizados do setor comercial de intermediação. A redução da taxa Selic, da ordem de 25 a 30% nos anos 1990 e mais próxima de 10% atualmente, os créditos de fomento com taxas mais equilibradas do BNDES, o financiamento na linha do PRONAF constituem um universo diferenciado, e seria o caso de tornar mais clara a sua interação com o setor de intermediação financeira dos grandes grupos privados, e o potencial de mudança.

Um terceiro eixo consiste no surgimento das diversas formas de microcrédito, crédito solidário, bancos comunitários (já são 103 no país), com iniciativas no BNB, Banrisul e outras instituições. As ONGs de intermediação financeira, generalizadas na Europa, podem constituir não alternativas, mas complementos importantes pela produtividade que assegura a sua inserção social. Particular importância deve ser dada às formas locais de crédito. Segundo o Economist, na Alemanha cerca de 60% da poupança acumulada da população encontra-se não em bancos, mas em sparrkassen, bancos comunitários locais, que permitem financiar iniciativas segundo as necessidades locais, ao invés das poupanças migrarem para o sistema especulativo mundial.

Um potencial inovador importante pode ser aproveitado a partir da conectividade dos pequenos produtores, com a desintermediação das atividades comerciais e financeiras. No Quênia, pequenos produtores rurais realizam as suas transações financeiras diretamente com os compradores finais, por meio de um software que aproveita os telefones celulares. O sistema Prosper nos Estados Unidos põe em contato quem tem dinheiro disponível e quem dele precisa, no site que permite contatos diretos. “A atividade bancária, diz o fundador, é essencial. O banco, não.”

A verdade é que temos hoje no Brasil, e no exterior através de contatos nossos, como reunir competências de primeira linha, nas diversas áreas complementares, para construir a imagem do processo e para construir alternativas de regulação e de organização sistêmica alternativa à dinâmica predatória hoje existente.

(*) Ladislau Dowbor é economista e professor da PUC São Paulo

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