Crise financeira mostra regime em beco sem saída, diz economista Chesnais

A crise financeira não tem final à vista. O modelo de crescimento baseado em endividamento, seguido nos países ricos, está num beco sem saída. E o calcado em exportações de insumos – como o do Brasil – pode não funcionar por muito tempo.

A análise é do economista marxista francês François Chesnais, 77, professor emérito da Universidade de Paris 13 e autor de “A Mundialização do Capital” (1996) e organizador de “A Finança Mundializada” (2005).

Para ele, os protestos em Londres, no Chile e no Orienta Médio são expressão “de uma doença mundial criada pelo caminho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças”. Numa época de valorização do consumismo, são “reações ao extraordinário abismo social”, afirma.

Folha – Qual a natureza da crise atual?

François Chesnais – O momento atual é um novo episódio na crise mundial. Ela começou há cinco anos, teve seu ponto mais crítico em setembro de 2008, com a quebra do Lehmann Brothers, e não tem um final à vista. Foi prenunciada pela crise asiática (1997-1998) e, no campo das finanças, pela quase quebra do Long Term Capital Management, no início da crise financeira russa. Eventos-chave nos anos 2000 e 2001 lançaram as bases para a eclosão da crise: o crash da Nasdaq, a resposta norte-americana ao 11 de Setembro, as guerras no Iraque e no Afeganistão, muito custosas política e financeiramente, e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio.

Quais são as causas?

O funcionamento da economia mundial desde o início dos anos 2000 se baseou em dois pilares: o regime de crescimento guiado pela dívida, adotado pelos EUA e pela Europa, e o regime de crescimento orientado por exportações globais, no qual a China é a principal base industrial, e o Brasil, a Argentina e a Indonésia são os provedores-chave de recursos naturais. A crise representa o beco sem saída, o impasse absoluto do regime guiado pela dívida. O segundo pilar está levemente melhor, mas o crescimento baseado em exportações globais não poderá funcionar por muito tempo sem uma forte demanda externa, especialmente dos EUA e da União Europeia.

Por que há tensão nos mercados?

Os investidores financeiros estão extremamente preocupados. Há a perspectiva de um segundo mergulho da economia dos EUA, uma crise em forma de “W” nas economias avançadas. Outro risco é a vulnerabilidade do sistema bancário europeu, na zona do euro e também no Reino Unido. Há também o perigo de que o lento crescimento faça com que empréstimos públicos e privados sejam cada vez mais difíceis de serem recuperados.

Qual a situação na Europa?

Na União Europeia, desde abril de 2010, tem havido um contínuo fluxo de dinheiro público para alguns governos e para os bancos. Isso tem sido acoplado a políticas de austeridade muito drásticas em alguns países, que os arrastou à recessão (-4% na Grécia). Com isso, fica impossível o repagamento da dívida soberana. Provoca a quebra de empresas, além de levar os sistemas bancários na Grécia, na Itália e na Espanha para uma cada vez maior proximidade do colapso. Isso ameaça bancos nos países do coração da zona do euro, especialmente na França.

A situação dos bancos é preocupante?

Os eventos nas Bolsas estão sendo subordinados a situações bancárias críticas. Em 2008, a ameaça às finanças globais veio dos bancos de investimento dos EUA e das grandes seguradoras. O próximo episódio financeiro maior acontecerá quando um segmento do sistema bancário da Europa entrar em colapso na Grécia, Espanha ou Itália. A atual turbulência nas Bolsas é a expressão do pânico do investidor, que tenta antecipar esse tipo de evento. Seu principal efeito é contribuir para a efetiva ocorrência de um desastre em algum lugar. Isso afeta o comportamento do consumidor de renda mais alta e desencoraja investimentos da classe média.

Nos seus livros, o sr. descreve os detalhes do avanço das finanças. Como avalia o atual momento na história do capitalismo?

É possível traçar paralelos com o passado. Mas em nenhum período anterior foram tão elevados a quantidade de ações e títulos, os ganhos dos rentistas e nem foi tão grande a quantidade em circulação do que eu chamo de “capital monetário elevado à enézima potência”. Nunca os lucros financeiros foram tão altos em comparação com a atividade produtiva. Há as consequências da globalização neoliberal contemporânea. Nunca as finanças foram tão desreguladas. Nunca a capacidade dos governos de recuperar o controle sobre as finanças foi tão fraca. A extrema fraqueza da liderança política é uma consequência direta disso. Mas há uma nova dimensão da história do capitalismo.

Qual é?

Essa nova dimensão é a crise ambiental, começando com as mudanças climáticas, que se desenvolve em paralelo à ascensão das finanças e de sua crise. Por isso, entramos nas piores condições possíveis numa era em que a civilização –como a concebemos, no Ocidente e no Oriente– está patinando. Nossa era é uma em que as enormes e concentradas forças econômicas estão sendo chamadas a agir em tempos de crise, o que Naomi Klein chama de “a doutrina do choque”: setores poderosos da sociedade não apenas protegem eles mesmos, mas usam catástrofes para ampliar sua dominação. A forma como o furacão Katrina foi tratado em Nova Orleans mostra que isso vale para grandes eventos ambientais. Alguma coisa muito perturbadora ocorreu silenciosamente na França e, imagino, em outros lugares: a “luta contra a mudança climática” foi substituída pela “adaptação à mudança climática”.

Os governos deveriam jogar mais dinheiro nos mercados financeiros?

As políticas fiscais anunciadas ou já decretadas são fortemente pró-cíclicas. Elas acentuam o beco sem saída do regime de crescimento e a incapacidade que a elite dirigente tem de imaginar qualquer outra maneira de reger a economia. Não haverá fim para a crise mundial enquanto os bancos e os investidores financeiros estiverem no comando, fazendo políticas totalmente dirigidas pelos interesses dos rentistas e dando respostas à crise dominadas por tentativas de dar sobrevida ao regime guiado pela dívida.

O que precisaria ser feito para a retomada da crescimento?

Nos EUA e na Europa a recuperação requer o reestabelecimento do poder de compra das classes baixas e médias, a recriação e expansão da capacidade dos Estados de fazer os investimentos sociais e ambientais necessários e o estabelecimento de um sistema monetário internacional estável, não subordinado ao capital financeiro. As condições para isso vão incluir o cancelamento de boa parte da dívida soberana, assim como de boa parte da dívida doméstica; o reestabelecimento de uma taxação correta para a renda das finanças e do capital (um retorno aos níveis de 1970 seria um começo); o reestabelecimento de um verdadeiro controle público do sistema de crédito; um controle restrito dos fluxos de capital e uma luta efetiva contra os paraísos fiscais.

Qual sua visão sobre o poder das agências de classificação de risco?

O poder das agências de classificação de risco apenas espelha o quanto os governos foram colocados nas mãos das finanças. Mostra a extensão da abdicação do poder dos governos, que mudaram as finanças públicas de uma forma baseada em impostos para uma baseda em dívida. Meu livro mais recente, “Les Dettes Illégitimes, Comment les banques ont fait main basse sur les politiques publiques” (2011) [As dívidas ilegítimas, como os bancos fizeram para manipular as políticas públicas, em tradução livre], enfatiza que, em 1980, a dívida pública da França era de 5% do PIB. Mostro que o crescimento é consequência da diminuição dos impostos para os de renda alta, os ricos em patrimônio e lucros, e dos gastos em programas públicos de financiamento custosos, que se tornaram elefantes brancos, como o Rafale que nenhum país comprou.

E o que ocorre agora?

As agências de risco estão pressionando a elite política francesa para aprofundar as políticas de austeridade. Isso no contexto de uma situação de quase recessão –0% de crescimento e desemprego acima de 9%. A recessão mundial de 2008-2009 mostrou a fraqueza da indústria francesa e os efeitos desastrosos do jogo no mercado da União Europeia. O que é necessário é uma política industrial e tecnológica comum, um sistema de intervenção comum. É possível que, nos próximos meses, ocorra na França uma reação popular contra os próximos cortes de orçamento.

As revoltas no Norte da África e no Oriente Médio, o movimento dos “indignados” na Espanha e agora os protestos em Londres têm alguma ligação?

Eu adicionaria à lista as enormes marchas em Tel Aviv, com 200 mil pessoas, e em outras cidades contra a alta nos preços dos alimentos e o desemprego. E também esse extraordinário movimento dos estudantes no Chile. Cada um desses movimentos precisa ser analisado com cuidado. São obviamente expressão de uma doença mundial criada pelo caminho tomado pelo neoliberalismo e pela dominação das finanças.

O que os movimentos têm em comum?

Eles têm em comum o fato de terem sido estimulados pela juventude. Em muitos casos são liderados por jovens líderes que estão emergindo do movimento. São todos reações ao extraordinário abismo social num tempo em que o consumismo é projetado mundialmente pela tecnologia contemporânea e pelas estratégias de mídia. Cada um tem suas idiossincrasias nacionais e suas trajetórias políticas. Em cada caso há uma diferente mistura de um componente fundamental democrático, com conteúdo anticapitalista. Reagem ao fato de a eles ter sido negada a posse de bens que outros da sua mesma geração possuem no seu cotidiano. A crescente percepção da corrupção politico-financeira atiça a indignação e, no caso dos jovens mais pobres, os faz usar os únicos métodos que têm à disposição.

Como os partidos conservadores, social-democratas e a esquerda estão reagindo a essa situação?

Para os partidos conservadores, é sempre sobre “lei e ordem”. Os social-democratas estão em profunda confusão. As forças da esquerda têm sido fortemente puxadas para o jogo institucional. Tomara que a duração, a severidade e os altos riscos da combinação entre as crises econômica e ambiental permitam o renascimento de uma forma de atividade política que comece a realmente desafiar o sistema. Na Europa, foi na Grécia que a mobilização de massa da juventude mostrou o conteúdo político mais profundo. Espero que seja o modelo para outros países.

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