Patrick Cruz
Valor Econômico, de Brasília
O Brasil ainda é uma economia em desenvolvimento, mas é seguro dizer que nunca fomos tão ricos quanto somos hoje. A renda per capita, superior a US$ 12 mil em 2013, atingiu um patamar inédito. Continuamos em uma posição intermediária nos comparativos internacionais – em 79º no mundo no ano passado, segundo o Fundo Monetário Internacional -, mas já estamos anos-luz à frente das mais pobres nações africanas, com as quais nos equiparávamos até os anos 1980.
O Brasil é também um país muito mais educado do que jamais foi. Se o analfabetismo funcional – pessoas que sabem ler e escrever, mas que têm dificuldade de compreensão do conteúdo de um texto – ainda é um problema, o analfabetismo considerado nas estatísticas nunca foi tão baixo. Pessoas que não sabem ler ou escrever coisa alguma já são menos de 9% da população com mais de 15 anos de idade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (o analfabetismo estatístico deixou a casa dos dois dígitos pela primeira vez apenas em 2008). Na outra ponta do universo educacional, a população universitária dobrou na última década e chegou aos atuais 7 milhões de pessoas.
Somos mais ricos e letrados hoje do que em qualquer outro momento da história do país – e, em aparente contradição, nos tornamos também mais violentos. Um em cada dez homicídios cometidos no mundo é registrado no Brasil. Em 2012, mais de 50 mil pessoas foram assassinadas no país, segundo o Anuário Estatístico de Segurança Pública, divulgado no fim do ano passado. Isso representou um crescimento de 8% em comparação com o ano anterior.
Os 50 mil assassinatos equivalem a mais de 25 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes – bem próximo, por exemplo, da taxa da República Democrática do Congo, que está em guerra civil há duas décadas, o maior conflito armado do planeta desde a Segunda Guerra Mundial. Se temos uma população mais educada e com melhor condição econômica do que tínhamos no passado, a violência não deveria também ter caído?
Se a explicação clichê é válida para quase todas as áreas de atuação do setor público, é particularmente verdadeira para o problema da violência: trata-se de uma questão complexa – e daí que a melhora dos níveis educacionais e socioeconômicos não necessariamente derruba os de homicídios, assaltos, estupros, latrocínios. O Valor ouviu pesquisadores e alguns dos principais especialistas em violência para tentar entender o fenômeno em um país que, no exterior, vende-se com a imagem da alegria. Se um tema tão complexo não se esgota em uma única abordagem, os argumentos a seguir ajudam a ligar os pontos do debate.
Houve uma ou outra queda pontual, mas, nos últimos anos, ficou patente a trajetória ascendente do número de assassinatos. Em 2012, foram 50.108 homicídios no país, segundo o Escritório sobre Drogas e Crime das Nações Unidas (UNODC, na sigla em inglês). Mas quantos desses foram crimes passionais? Ou por acertos de contas? Quantos estariam relacionados a apenas um disparo de revólver? Ou a múltiplas facadas? Ou ocorreram em áreas dominadas por organizações criminosas?
Os dados são imprecisos – e a imprecisão prejudica as investigações, o que afeta diretamente os resultados conseguidos pelas forças públicas de segurança. Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador da pesquisa Mapas da Violência, estima que apenas 8% dos homicídios do país sejam solucionados – e essa baixa taxa de sucesso tem íntima relação, também, com o parco material de que a polícia dispõe para investigar.
“A qualidade das informações ainda é muito ruim. Nos últimos 15 anos, não houve evolução tecnológica dos sistemas de registro de crimes”, diz Marcelo Batista Nery, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo (USP). “Isso afeta até a avaliação do impacto das ações de segurança do poder público. Não se sabe ao certo quando uma medida está funcionando ou não.”
Para um governante, é sempre mais lustroso apresentar números sobre quantas delegacias foram construídas ou quantas viaturas policiais foram compradas, mas nem sempre o que se mostra em peças publicitárias é o que a população precisava naquele momento. É muito comum, aliás, que se ouça de governantes a palavra “investimento” nas manifestações sobre segurança pública, como se o problema fosse dinheiro.
Mas os comparativos internacionais mostram que o enrosco não está aí. O Brasil investe cerca de R$ 60 bilhões por ano em segurança, que equivalem a 1,4% do PIB. Proporcionalmente, é o mesmo valor investido pela França. A diferença dos resultados é abissal: lá, a taxa de homicídios é de 1,8 para cada 100 mil habitantes; aqui, de 25 para cada 100 mil.
A fragilidade dos números que balizam as políticas de segurança pública no país não se deve apenas às falhas dos sistemas de registro e comunicação de crimes. Em crimes como estupros, há o que se chama de subnotificação – as vítimas deixam de procurar a polícia para prestar queixa.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve 50.617 estupros no Brasil em 2012. “Mas é possível que o número seja até dez vezes maior”, afirma Renato Sérgio de Lima, vice-presidente do conselho do Fórum. E é um círculo vicioso que se forma: as vítimas não se sentem apenas constrangidas de registrar um crime tão traumático, mas também desmotivadas por detectarem, na prática, que poucos crimes têm de fato solução.
No caso específico dos estupros, as estatísticas insuficientes não se devem apenas à falta de boletins de ocorrência. Há números que não batem. De acordo com o Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), ligado ao Ministério da Justiça, foram registrados 38.893 estupros no Brasil em 2012 – número menor, portanto, que o apurado pela pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O Sinesp também informa que ocorreram 38.847 assassinatos, nesse mesmo ano – número que, se não deixa de ser alto, ao menos não chega aos alarmantes 50 mil informados pelo UNODC, o escritório das Nações Unidas para as questões de crime e drogas. O Valor solicitou entrevista ao Ministério da Justiça para esta reportagem, mas não obteve resposta.
Em dezembro, a Conecta, plataforma de pesquisas on-line do Ibope, ouviu 1,8 mil pessoas para saber o que elas gostariam de ganhar de presente de Natal. A resposta mais frequente, dada por um terço dos entrevistados, foi: o fim da violência. (Na mesma pesquisa, apenas 1% dos entrevistados disseram que gostariam de ter como presente de Natal o título da Copa do Mundo para a seleção brasileira).
Três meses atrás, a Confederação Nacional da Indústria divulgou a pesquisa “Retratos da Sociedade Brasileira: Problemas e Prioridades do Brasil para 2014”. No levantamento, feito pelo Ibope com mais de 15 mil eleitores de todo o país, a melhora dos serviços de saúde – tradicional campeã em pesquisas do gênero – apareceu como maior prioridade dos entrevistados. Em segundo lugar – à frente de outros dois tradicionais campeões nessas pesquisas, a educação e o emprego – estava a segurança, preocupação de 31% das pessoas ouvidas.
Quando a população é ouvida, fica evidente como a segurança pública tomou a atenção das pessoas que não ocupava há 20 ou 30 anos. Nas políticas de segurança, ouvir a população – ou, em outras palavras, estar próximo dela – é ação materializada, por exemplo, pela adoção das polícias comunitárias.
No Canadá, que tem um dos casos mais bem-sucedidos de polícia comunitária do mundo, a adoção do modelo, a partir dos anos 1990, demorou oito anos, mas ajudou a transformar a opinião pública, até então bastante crítica dos serviços de segurança. Em um episódio que virou epítome do modelo canadense, a polícia começou a receber denúncias de que os telefones públicos de um bairro estavam sendo usados para esconder drogas. Resultado: em 30 dias, todas as cabinas telefônicas passaram a ser de vidro, transparentes.
As iniciativas de polícia comunitária no Brasil são exceção. “Tem um ou outro Estado que diz adotar policiamento comunitário, mas são projetos muito incompletos”, diz Nery, do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Nos Estados Unidos, iniciativas como a Cure Violence usam até ex-presidiários regenerados na intermediação de conflitos.
“Quando se está a par da vida das pessoas e comunidades, os conflitos podem ser mediados com eficiência”, diz Brent Decker, diretor da área internacional daquela organização não governamental americana, que atua em áreas violentas de grandes cidades americanas e também de outros países.
Na década passada, o físico José Roberto Iglesias, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Unisinos, começou a aplicar princípios da física e da economia para estudar o fenômeno da violência no Brasil. Iglesias valeu-se, entre outras, da teoria do economista americano Gary Becker, vencedor do Prêmio Nobel de Economia, morto no início do mês.
Nos anos 1960, Becker sustentou a ideia de que – dilemas morais à parte -, se um criminoso acha que o dinheiro a ser ganho em um delito vale o risco de ser apanhado pela polícia, ele vai cometer o crime. Trata-se de uma decisão de negócio – e por isso o potencial de crescimento de atividades criminosas como o tráfico de drogas pode ser analisado sob a luz de preceitos econômicos.
Controversa ou não, essa ideia abriu mais um caminho para se entender o crime, suas origens e seu potencial crescimento. “Não se pode pensar no crime apenas sob o aspecto socioeconômico”, diz o professor Iglesias. “Quem comete um crime não necessariamente é uma pessoa pobre precisando de dinheiro para comer.”
É possível, aliás, enxergar o aumento de delitos como tráfico de drogas e homicídios como uma decorrência da melhora da economia do Brasil, sustenta o professor. Afinal, se mais pessoas têm dinheiro no bolso, o consumo aumenta. Quem não consome vai buscar meios para fazê-lo – inclusive ilícitos.
Esse raciocínio ajuda a explicar o aumento do número de crimes no Rio Grande do Sul, um dos Estados mais prósperos – não é a única explicação, frise-se, mas é uma delas. Em 2012, segundo os dados do Anuário Estatístico de Segurança Pública divulgados no fim de 2013, o número de homicídios cresceu 15% no Estado. E, no ano passado, o volume de drogas apreendidas foi o maior em mais de uma década.
“A maior parte dos homicídios está relacionada com o tráfico de drogas, mas evita-se o debate sobre as drogas, que fica quase sempre limitado apenas ao aspecto do consumo”, diz Mônica Concha, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, que defendeu seu doutorado com uma tese que trata da relação entre as drogas, a violência e o desenvolvimento do Estado.
São abordagens que não costumam ser ouvidas rotineiramente, mas que ajudam a lançar luz sobre o problema da violência a partir de outros ângulos. É preciso compreender para agir.
No início do mês, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi linchada no Guarujá, no litoral de São Paulo. Fabiane foi vítima de um boato de que estaria sequestrando crianças de sua vizinhança, no bairro Morrinhos IV, para usá-las em rituais de magia negra. Segundo os relatos que surgiram nos dias depois de sua morte, a dona de casa foi agredida por cerca de cem pessoas, enfurecidas com a suposta participação de Fabiane nos sequestros e nos rituais, enquanto outras mil assistiram ao linchamento. Ela morreu em decorrência dos ferimentos – e a polícia informou que nenhum caso de sequestro de crianças para uso em rituais de magia negra foi registrado na cidade. Fabiane era inocente.
O linchamento da dona de casa foi um dos mais rumorosos registrados nos últimos tempos no país. Ocorreu na esteira de uma série de outros casos de linchamento e também do chamado “justiçamento”, quando supostos criminosos foram amarrados a postes ou despidos em praça pública como resposta popular aos crimes cometidos pelos “condenados”.
Essa sequência de episódios parece fazer parte de uma inédita onda de linchamentos e justiçamentos no país. Embora não haja estatísticas oficiais sobre essa modalidade de crime, é precipitado afirmar que nunca houve tantos linchamentos quanto atualmente. Ariadne Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, fez um levantamento dos casos ocorridos em São Paulo a partir de registros dos crimes na imprensa. Ela cobriu um intervalo de 20 anos – e o maior volume de notícias sobre linchamentos ocorreu em 1991, na sequência de um outro caso famoso ocorrido em Mato Grosso. “Um caso de grande repercussão acaba desencadeando outros, mas isso não significa que haja mais linchamentos hoje que no passado”, diz a pesquisadora.
Assim como os dados incompletos das estatísticas sobre homicídios atrapalham a solução dos casos, a falta completa de informações sobre outros crimes põe essas ocorrências nas sombras – e pode acabar até criando uma sensação de insegurança maior do que a que realmente existe. Sobre transparência, mais um exemplo que vem de fora: no Chile, o trabalho da polícia é dividido por distritos, e cada um tem que informar semanalmente, e em detalhes, as ocorrências de sua área. A população sabe o que está ocorrendo em suas cercanias e as autoridades sabem se as metas de cada distrito estão sendo cumpridas. Não é uma ideia rebuscada – mas, para quem vê o problema da violência no Brasil como insolúvel, a iniciativa soa como a reinvenção da roda.