A mercantilização de todas as dimensões da natureza e da vida, inclusive da saúde, que de direito universal e dever do estado está sendo alçada à condição de produto – como um carro, que compra quem pode – e o papel a que se presta a Ciência cada vez mais afinada com o lucro estiveram no centro da palestra O profissional humanitário.
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, foi protagonista de uma concorrida palestra, parte do simpósio Programa Mais Médicos, Perspectivas e Opiniões, que a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), realizou na semana passada para debater avanços e desafios do programa federal
Durante cerca de meia hora, no final da manhã da última quarta-feira (11), o teólogo, escritor e comentarista da Rádio Brasil Atual falou para professores, gestores, estudantes, agentes de saúde, usuários do SUS, médicos cubanos e de outras nacionalidades.
Convidado pela organização para falar sobre como deveria ser, ao seu ver, o “profissional humanitário”, ele não poupou nem a incompetência do governo federal em comunicar o que considera ser talvez a melhor e mais revolucionária de suas ações: justamente o programa Mais Médicos.
Sua crítica dura, porém com ternura, abordou os “descaminhos” da ciência moderna, seu principal produto, a medicina, e seus subprodutos – entre eles, os médicos.
Acompanhe, a seguir, a transcrição dos principais pontos de sua reflexão:
Profissional mercantilista
O profissional humano não se antagoniza com o desumano. Desumano é o doutor Leandro Boldrini, do Rio Grande do Sul. Esse é um médico desumano porque se casou com uma mulher rica, teve um filho, essa mulher faleceu, ele ficou viúvo, se casou novamente e decidiu assassinar o filho de 11 anos para ficar com a herança que esse menino receberia da mãe. Esse é um profissional desumano. Talvez dos mais exemplares de até onde a nossa mentalidade neoliberal leva profissionais com nível superior a agir em função de interesses monetários. Um pai assassina o único filho, com a conivência da madrasta. Há agora na Justiça a desconfiança de que ele teria assassinado a mulher, que é muito mais rica que ele.
O profissional humano – ou humanizado – tem como polo antagônico não este desumano Boldrini, mas o profissional mercantilista. Ou seja, se fizermos um balanço dos três grandes períodos da história do ocidente – medieval, moderno e pós-moderno – veremos que o que caracteriza cada período é o seu paradigma; tudo gira em torno do seu paradigma, mesmo que a gente não tenha ideia da sua existência. Na idade média, era a religião; tudo girava em torno da religião, inclusive o diagnóstico das doenças. É coisa do pecado, do demônio; precisa de muita água benta, muita “benzeção”.
Veio a modernidade e o paradigma se deslocou da religião para a razão e suas filhas diletas: a ciência e a tecnologia. Somos a última geração moderna. A cultura, os valores, são em decorrência de estarmos vivendo algo que nossos avós não viveram. Eles viveram mudanças; nós, algo mais profundo. A última geração que viveu algo como nós estamos vivendo foi de Leonardo Da Vinci (1452-1519), René Descartes (1596-1650), Nicolau Copérnico (1453-1543), Galileu Galilei (1564-1642), viveram o que estamos vivendo hoje: uma mudança de época. Qual será o paradigma do pós-moderno?
Submissão ao mercado
Ainda é cedo para saber. Mas o receio é que não seja a razão, nem a religião, e sim o mercado. A radical mercantilização de todas as dimensões da natureza e da vida. E aí entra o exercício da medicina. No século 20, ao se submeter a fins lucrativos, políticos, militares e racistas, sobretudo nas duas grandes guerras, a ciência se sujeitou a interesses antiéticos e desumanos e se separou do humanismo.
Permitiu o crescimento dessa mentalidade neoliberal, que é filha do capitalismo, de que a natureza, as relações, tudo está em função da obtenção privada do lucro. A ciência passou a ter um valor em si e isso trouxe consequências terríveis, desde o uso da energia nuclear na destruição de Hiroshima e Nagasaki até os agrotóxicos, talvez a causa do crescimento espantoso do câncer em nosso país.
Talvez estejamos ingerindo um nível muito superior que o nosso organismo suporta. Os transgênicos, cuja pesquisa não esta concluída, e outras pesquisas separadas de qualquer princípio ético e independente da consideração com a vida humana, desde que isso traga lucro.
Hoje enfrentamos algo mais preocupante: a retirada da saúde como direito universal. Esse produto da ciência, para mercadoria, um produto igual a um carro. Quem não tem dinheiro para comprar um carro, anda de ônibus. O carro é um produto, não um direito universal. O estado não precisa se preocupar que todos tenham um automóvel, como que tenha saúde e educação.
Me lembro de Zé Alencar (José Alencar, vice-presidente de Lula) dizendo na TV que tinha entrado num pet scan (aparelho de diagnóstico por imagem de última geração) no Sírio-Libanês… Até pensei que era pet de cachorro. “Quem dera que todo brasileiro pudesse entrar num pet scan”, disse ele. E eu fiquei pensando: que bom que todo brasileiro não precisasse de médico e hospital porque tem saneamento, educação.
O Padim Ciço (Padre Cícero Romão Batista) tem fama de santo porque ensinava a população a lavar a mão depois de defecar. E assim a mortalidade começou a ser drasticamente reduzida naquela região, por ensinar noções de higiene, e as crianças não morriam mais por bobagem.
Medicina que não trata
A medicina não trata as pessoas. O paciente diz ao médico: “Doutor, estou com ‘uma puta’ dor de barriga.” O médico: “Vou te dar remédio para a dor de estômago, fantástico, mas tem como efeito colateral uma dorzinha de cabeça, mas vai curar a dor de barriga.” No outro dia, o paciente vai a outro posto, reclama da dor de cabeça e recebe remédio que ataca o estômago… É como o dentista, que cuida de uma parte do dente. Antes, cuidava do lábio à garganta. Hoje, tem o da gengiva, o da coroa…
A gente não trata das pessoas. É preciso criar uma cultura profissional para que a pessoa seja tratada na sua totalidade. É a chamada bioética holística, que deve adequar a pessoa no seu contexto. Texto, contexto, pretexto valem também pra saúde, assim como para a literatura. Quando se conhece a pessoa, o ambiente e contexto em que ela vive e as razões de seus problemas, fica mais fácil tratar.
Ou seja, é essa beleza que vocês (do Ministério da Saúde e do MEC) apresentaram aqui e que o governo não sabe comunicar… Eu fiquei aqui pensando “como o governo é ruim de comunicação”.
É muito ruim. E ainda paga para a televisão divulgar propaganda do governo sendo que pela Constituição o sistema radiotelevisivo na Brasil é propriedade do governo federal. Pode se entender um negócio desses? É concessão pública. O governo paga para divulgar informação de utilidade pública…
Mas voltando, há os agentes comunitários de saúde… Se a dona Maria ficar doente e tiver pouco tempo para ser atendida num consultório, vai ficar pior ao perceber o médico está olhando para a porta, para o próximo atendimento, para o relógio, porque precisa sair para almoçar, pegar o filho na escola.. E a dona Maria não vai poder contar o que precisava contar, como poderia contar para um agente de saúde.
Os agentes vão dar uma retaguarda tal que, quando a dona Maria entrar, mesmo que a consulta seja rápida, ela sabe que foi bem acolhida, tratada, porque o médico já sabia, pelos agentes, qual é o seu problema. Isso é que é fundamental.
Morte
O homem tem defeito de fabricação e prazo de validade – menos o Sarney. O fato é que colocamos a morte como antagonista da vida. E estamos criando uma nova síndrome, que é a ‘síndrome do pânico da velhice’. Quando falo no aeroporto que sou velho, as pessoas se assustam. Tenho de falar que sou seminovo, como o carro. Porque nós ‘clandestinizamos’ a morte. Antigamente tinha choro, vela, fita amarela, luto, missa de sétimo dia, rito de passagem. Hoje a criança não vai ao velório, cremação, enterro de um avô, de um ente querido. O adulto, para ela, foi abduzido, sequestrado por um disco voador.
Ao colocarmos a morte como antagônica à vida, estamos colocando medo da velhice. A morte virou vergonha social. Precisamos integrar a morte à vida, à questão do limite da vida. Isso é humanizar a vida e a prática médica. Teremos então melhor saúde e vida. E não essa coisa ridícula que é tanta ‘gente de 100 anos’ fazendo de conta que tem 20.