Alessandre de Argolo
Jornal GGN
O que mais me causa espanto no PL nº 4330/2004 é que ele tem um desavergonhado aspecto “Cavalo de Troia” em sua lógica mais profunda (a que vai além das aparências): o que existe na verdade é a consolidação da “quarteirização” e não da “terceirização”, com chances reais disso virar uma espiral ad infinitum, acabando com o que se conhece por vínculo empregatício ou simplesmente com a noção do emprego como ele hoje existe juridicamente, ou, no mínimo, promovendo uma profunda alteração no quadro da atual realidade jurídico-trabalhista brasileira. E isso será feito não por meio da clássica alteração legislativa, revogando a CLT. Isso está sendo feito por uma certa lógica maquiavélica que consiste em manipular a realidade social e mercadológica que surgirá daí em diante, criando um quadro que tornará o vínculo empregatício algo cada vez menos usado. A nova lei alterará as condições do mercado de trabalho de tal maneira que os clássicos contratos de trabalho se tornarão economicamente não atrativos do ponto de vista das empresas ou empregadores.
Ninguém, dentre os que eu li e ouvi (aliás, é vergonhoso tomar conhecimento dos argumentos em favor desse projeto de lei: eles simplesmente opinam como se não existissem empregados, direitos trabalhistas que são conquistas históricas, nada disso, todos os argumentos focam exclusivamente nos benefícios para as empresas e empregadores, danem-se os trabalhadores com sua CLT dos anos 40 etc), está falando a verdade sobre esse projeto, o que me causa perplexidade, porque não é possível que nem mesmo as centrais sindicais mais ligadas à defesa dos direitos dos trabalhadores tenham percebido que esse projeto de lei é o passo definitivo para a extinção da noção jurídica de emprego no Brasil.
E por que eu digo isso? Ora, é muito simples: a empresa prestadora de serviços terá a possibilidade, dependendo do contrato original (celebrado com a chamada empresa contratante), de contratar uma outra empresa para que preste serviços para a empresa contratante em seu lugar, isto é, sem se valer de seus próprios empregados ou usando proporcionalmente uma parcela menor dos seus próprios empregados se comparada com a necessidade de mão de obra que terá que suprir da empresa contratante. E isso, essa subcontratação, acontecerá em outro contrato, celebrado entre a prestadora de serviços e a chamada, pelo projeto de lei, de empresa subcontratada.
Então, num ponto da cadeia de relações jurídico-trabalhistas que serão formadas, teremos três empresas: empresa contratante, empresa prestadora de serviços e empresa subcontratada. Acontece que no projeto de lei original não existe um único dispositivo que ponha limites às subcontratações ou, por exemplo, que diga que uma subcontratada não possa ela mesma “terceirizar” (que já seria “quinteirizar”, no caso).
Nada impede, pelo que eu entendi, a não ser que exista proposta para mudar isso, que a subcontratada, por exemplo, passe a agir num outro polo de relações jurídico-trabalhistas, como já fez a empresa prestadora de serviços quando subcontratou, como se fosse uma nova empresa contratante e assim sucessivamente.
Agora imagine isso em larga e ampla escala? Imaginou o resultado? Praticamente não teremos mais empregos. Quase todo mundo será prestador de serviços.
A terceirização sempre fez sentido com a diferença entre área meio e área fim da empresa. De fato, nunca fez sentido um banco, por exemplo, ter vigilantes no seu próprio quadro de empregados. É natural que o banco contrate uma empresa de vigilância para fazer esse serviço para ele.Isso inegavelmente ajudava a dinamizar a economia, melhorava a qualidade da mão de obra em algumas áreas do mercado de trabalho e não era uma mera precarização.
Como o PL da “terceirização” acaba com essa diferença entre área meio e área fim da empresa, isso tende a, no limite, tornar a noção de emprego diluída, já que todo mundo que irá trabalhar pode não mais fazer isso na sua empresa, mas em outras empresas, como prestador de serviço. Vai consolidar o ramo da terceirização: empresas que trabalham para outras empresas. O risco é isso gerar uma espiral ad infinitum que eliminará de vez a noção de emprego.Uma empresa não irá contratar empregados na dimensão exigida. Basta que ela saiba como garantir a mão de obra de que precisa para a sua atividade econômica, que se baseará em contratar serviços (no caso das contratantes que não prestem serviços) ou simplesmente será a de prestar serviços, não importa qual seja ele, já que agora se pode subcontratar (no caso das prestadoras de serviços que poderão livremente subcontratar, em qualquer área). Ou seja, uma empresa poderá, na verdade, fornecer mão de obra nas mais diversas áreas, sem existir nenhuma especialização. É uma empresa que simplesmente presta serviços, quaisquer que sejam eles.
Em suma, se uma empresa, máxime em razão da subcontratação, pode se firmar no mercado com um número de empregados em seus quadros muito inferior ao tipo de mão de obra de que necessita ou está fornecendo, por que ela iria contratar mais empregados? Não vai, é claro. E aí será o início do fim do emprego. O resultado disso é que teremos, com o passar do tempo, muitas empresas com 100% dos trabalhadores sendo terceirizados, pois a exigência de uma quantidade mínima de empregados no quadro das empresas recai sobre as prestadoras de serviços não sobre as contratantes. E as que prestam serviços começarão a fazer o mesmo, a subcontratar, representando a maioria dentre a mão de obra que ela fornecerá ao mercado. Se não se pôr um fim nisso, a tendência é a de que não exista mais nenhum empregado, mas apenas terceirizados.
Vejam esse artigo: Art. 5º São permitidas sucessivas contratações do trabalhador por diferentes empresas prestadoras de serviços a terceiros, que prestem serviços à mesma contratante de forma consecutiva.
É a eternização da terceirização. O trabalhador vai ficar eternamente sendo contratado como terceirizado, mesmo quando a empresa prestadora de serviço mudou. Ou seja, vai rescindir o contrato com uma prestadora para assinar com a outra e continuar trabalhando para a contratante, que agora já contratou serviços de outra empresa prestadora. Muda o nome da prestadora, que é outra empresa, mas a realidade do contrato permanece a mesma.
Os cavalos de troia são esses artigos, logo os dois primeiros:
Art. 1º Esta Lei regula o contrato de prestação de serviço e as relações de trabalho dele decorrentes, quando o prestador for sociedade empresária que contrate empregados ou subcontrate outra empresa para a execução do serviço.
Parágrafo único. Aplica-se subsidiariamente ao contrato de que trata esta Lei o disposto no Código Civil, em especial os arts. 421 a 480 e 593 a 609.
Art. 2º Empresa prestadora de serviços a terceiros é a sociedade empresária destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos.
§ 1º A empresa prestadora de serviços contrata e remunera o trabalho realizado por seus empregados, ou subcontrata outra empresa para realização
desses serviços.
§ 2º Não se configura vínculo empregatício entre a empresa contratante e os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo.
O problema está nesse trecho do § 1º do art. 2º: “ou subcontrata outra empresa para realização desses serviços.”
Vejam que o projeto de lei, em nenhum momento, diz que a empresa subcontratada não pode ela mesma subcontratar. Ou seja, gerou um espiral de cadeias de terceirização.
Uma fornece serviços para outra e assim sucessivamente. A contratante não irá querer saber de onde partem os trabalhadores. Ela somente vai se preocupar com a realização do trabalho. Pode-se argumentar que em algum momento a cadeia de subcontratação terá que ser finalizada. Afinal, as empresas são em número finito no mercado (o que não impede que as subcontratadas contratem diretamente pessoas físicas que prestem serviços, já que estaremos no âmbito de um novo contrato, com novas terminologias, que inclusive pode ser regido pelas normas civilistas e não trabalhistas).
É certo que toda empresa prestadora de serviços terá que ter empregados em seus quadros (art. 3º do projeto de lei, que estabelece número mínimo de empregados entre as prestadoras de serviços). No entanto, o simples fato de uma prestadora de serviços se tornar ela mesma uma espécie de contratante, só que com outro nome, o que acontece com a subcontratação, já sinaliza para o que se tem em mente. Você vai subcontratar para fornecer serviços ( = contratar para fornecer essa mão de obra a outras contratantes).
Essa é a lógica profunda da lei. Os empregados contratados enquanto tal (com vínculo de emprego) só existirão para suprir critérios formais mínimos relacionados ao número de empregados das prestadoras de serviços, pois o projeto de lei fala em número mínimo de empregados para essas empresas e esse número não tem nada a ver com a necessidade de mão de obra da contratante, que pode ser de tal dimensão que a prestadora de serviços possa fornecer a mão de obra sem fazer isso por meio dos seus próprios empregados: bastará subcontratar.