Tratamento usa realidade virtual para vítimas de assaltos em Porto Alegre

Reportagem publicada pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre, na edição de domingo, dia 20, destacou o tratamento com uso da realidade virtual a pessoas vítimas de assaltos. O tratamento, pioneiro no Rio Grande do Sul, usa a simulação de cenários traumáticos para auxiliar vítimas a superar perturbações emocionais adquiridas no seu contidiano.

O SindBancários mantém convênio com a PUC-RS, pioneira no tratamento, para atendimento aos bancários que presenciaram violência no ambiente do trabalho.

Confira a íntegra da reportagem:

Tecnologia combate traumas da violência

Ao colocar os óculos especiais, um cenário tridimensional surge por todos os lados. Uma agência bancária virtual se materializa, e a imagem de clientes, que mais parecem ter saído de um videogame, povoa o cenário. De repente, um ladrão entra e começa a atirar com uma espingarda. Esse poderia ser o trailer de mais um filme em 3D ou do lançamento de um jogo eletrônico. Na verdade, trata-se da mais nova tecnologia utilizada para ajudar pessoas traumatizadas pela violência no Rio Grande do Sul.

Desenvolvido pelos departamentos de Informática e Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o equipamento de realidade virtual reproduz cenas que os bancários, uma categoria que aparece no front da violência no Estado, querem esquecer. Neste ano, 60 agências já foram atacadas, segundo o Sindbancários, que firmou um convênio com a universidade para tratar os profissionais afetados.

“Qualquer pessoa estranha que entrava na agência ou alguém que falasse mais alto já me deixavam nervosa. Tive colegas que não aguentaram a pressão. Eu fiquei com a mão tremendo só de me lembrar”, afirma a bancária Telma, ao recordar os momentos de terror que passou na mira de uma arma.

Ela já testemunhou dois assaltos e, mesmo passados alguns anos dos crimes, as cenas dos bandidos a fazem reagir. O trauma continua presente.

Ainda em fase de testes, o projeto poderá ajudar pessoas como Telma a superar seus problemas. Usando tecnologias de animação, os pesquisadores criaram uma agência virtual na qual o terapeuta poderá agilizar o tratamento de profissionais que têm dificuldade em trabalhar normalmente, com medo de novos assaltos e ameaças.

“Aos poucos, o paciente é gradualmente exposto a esse ambiente. Ele permite que a pessoa simule que está trabalhando e algumas situações acabam aparecendo, como um cliente que fala mais alto, uma briga e até um assalto mesmo. Hoje, na terapia normal, tentamos estimular o paciente a imaginar as imagens e não temos certeza se ele faz isso. Com essa tecnologia, é possível monitorar melhor se o tratamento está dando certo ou não”, explica o professor Christian Kristensen, coordenador do projeto.

Bancário tem dificuldades para falar de seu trauma

Apenas um paciente já começou o tratamento. Esse bancário não se sente em condições de falar sobre o assunto. Está bastante traumatizado pelos sete assaltos que já presenciou, tanto que não consegue pôr os pés numa agência. Até o fim do ano, a expectativa é que 60 pacientes estejam envolvidos no projeto.

“Esperamos que, até março, a gente tenha uma quantidade suficiente de avaliações que justifique o uso desse tratamento ou não. Acreditamos que sim e que, futuramente, possa ser usado para atender outros traumas”, aponta Kristensen.

Para o professor Márcio Pinho, coordenador do Grupo de Realidade Virtual da Faculdade de Informática, o avanço da tecnologia permitirá que o terapeuta possa intervir mais, expondo detalhes que estimulem os pacientes a se superar.

“No futuro, essa tecnologia poderá estar em qualquer consultório, até disponível via internet”, acredita Pinho.

Risco à saúde

O TRAUMA

– Trauma é toda situação na qual uma pessoa vivencia ou testemunha momentos de ameaça ou violência, que podem colocar em risco sua integridade física

– Normalmente, a reação é de intenso medo, impotência ou horror. Após vivenciar um trauma, é normal ter algum tipo de reação durante dias ou semanas

– Algumas, porém, não se recuperam espontaneamente, podendo desenvolver problemas mais graves como transtorno de estresse agudo (TEA), transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, abuso de álcool ou drogas

O ESTRESSE DA VIOLÊNCIA

– O TEPT foi pesquisado após a Guerra do Vietnã, quando veteranos voltaram traumatizados. Mesmo anos depois do fim do conflito, muitos ex-combatentes ainda apresentavam o problema

– O transtorno é caracterizado por altos níveis de ansiedade e momentos em que a vítima tem a impressão de estar revivendo o evento traumático

– Os principais sintomas são: sensação de que o fato está acontecendo novamente; pesadelos; evitar pessoas e lugares ligados à situação traumática; diminuição de interesse e de atividades; falta de concentração; insônia e tristeza

– O tratamento mais indicado inclui o uso de medicamentos aliado à terapia

– A terapia cognitivo-comportamental é a mais utilizada atualmente. O método ajuda o paciente a entender e a mudar seus pensamentos, sentimentos e atitudes, aliviando os sintomas e o sofrimento

O real cenário da saúde mental

A realidade virtual é um futuro distante de uma fatia maior da população. Com o avanço da violência no Estado, novos casos de pessoas traumatizadas surgem a cada dia, em todas as faixas sociais. Sem estrutura, a saúde pública não consegue absorver essa demanda.

Médico do posto de saúde da Vila Cruzeiro, na Capital, o psiquiatra Sérgio Noll Louzada afirma que o número de moradores traumatizados em regiões mais periféricas vem aumentando.

– As pessoas menos favorecidas estão muito mais expostas. Ao morar numa vila, estão sujeitas a tiroteios, por exemplo – afirma.

Louzada relata que vários profissionais, que não têm convênios médicos, como vigilantes e taxistas, procuram ajuda nos postos:

– Isso não ocorria antes. É impressionante a quantidade de pessoas traumatizadas pela violência que aparece no posto, em estágio agudo. A rede não consegue atender direito, não tem vaga. Pela situação atual, isso deveria ser alvo de saúde pública.

Fora da Capital, o problema se agrava, já que alguns municípios não investem em centros de saúde mental e repassam os casos a cidades maiores. A psiquiatra da Seção de Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde, Mary Nunes, reconhece qu, apesar de o número de unidades de atendimento ter crescido nos últimos anos, ainda é insuficiente para atender a demanda.

Segundo ela, a expansão dos Centros de Atendimento Psicossocial (Caps) – estrutura criada para dar assistência ambulatorial a pacientes em sofrimento psíquico e evitar internações – poderá reduzir os problemas. Atualmente, há cerca de 110 Caps funcionando no Estado.

– As pessoas com estresse pós-traumático não precisariam de internação, mas os casos requerem terapia. Há fila nas unidades ambulatoriais, mas os Caps funcionam como pronto-atendimentos, o que permite à pessoa ser avaliada e encaminhada. A orientação é buscar assistência nos Caps – diz.

Outras profissões

POLICIAL MILITAR

– Na linha de frente do combate ao crime, muitas vezes estão sujeitos a traumas profundos

– A Brigada Militar mantém atendimento no Hospital da BM, na Capital, para os servidores

– Eles são avaliados e, se contatadas alterações psicológicas, o policial é afastado do serviço de patrulhamento

– De acordo com a psiquiatra do hospital da BM, Cláudia Vargas, os casos mais comuns envolvem policiais feridos em serviço ou que sofreram situações contra a sua integridade física

– Bombeiros também apresentam traumas por vivenciar cenas chocantes como suicídios e retirada de corpos em acidentes

– Alguns servidores saem das ruas e são realocados em funções administrativas. Outros são reformados

VIGILANTES DE CARRO-FORTE

– O transporte de valores é uma das atividades mais visadas por assaltantes. Os vigilantes estão sujeitos à ação de quadrilhas especializadas, com armamento pesado como fuzis ou outros artifícios para furar a blindagem

– É uma profissão com muita rotatividade, já que as pessoas não conseguem permanecer muito tempo trabalhando por causa da pressão e de estar constantemente na mira de assaltantes

– Segundo o presidente do sindicato da categoria, Antônio Pires de Ávila, de abril a junho deste ano, 60 profissionais já pediram demissão na Capital

– Ávila aponta que poucas empresas oferecem convênio médico para os funcionários e a maioria precisa recorrer à saúde pública

“Eu vivi os dois lados da moeda”

Entrevista: Lorena Caleffi, psiquiatra vítima de assalto

A psiquiatra Lorena Caleffi já foi vítima de assalto. Ela, que atualmente trata pessoas traumatizadas pela violência, já passou pelo horror de ter sua casa invadida e sua família ameaçada por criminosos armados há alguns anos. Essa experiência hoje a ajuda a entender melhor as agruras de seus pacientes, conforme descreve a ZH:

Zero Hora – A senhora sofreu algum trauma após ser assaltada?

Lorena Caleffi – Eu e a minha família tivemos uma reação de ajustamento. É uma reação esperada, que não deve durar mais de duas semanas. Se passasse disso, já seria outro diagnostico. Tivemos medo de invadirem novamente. Tínhamos a impressão de que aquela casa não era mais nossa. Mas passou com o tempo.

ZH – Essa experiência ajudou a senhora a tratar melhor seus pacientes?

Lorena – Sem dúvida. Essa experiência ajuda a entender. Eu vivi os dois lados da moeda. Certamente, entender a situação de invasão e impotência que a pessoa sente, a perda de referencial, é importante.

ZH – Essas novas experiências, usando a realidade virtual, representam o futuro do tratamento?

Lorena – Sim, tudo que vier a somar no tratamento sempre é benéfico. O que é preciso é tomar cuidado com a moda. É desfavorável acreditar que todos vão se adaptar. Nem todo mundo responde da mesma forma, nem todos se beneficiam do mesmo tipo de tratamento. O melhor resultado é sempre o dos tratamentos combinados.

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