Artigo do juiz Guilherme Feliciano: Terceirização para todos. Bom para quem?

Tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 4.330-C/2004, da relatoria do deputado Arthur Oliveira Maia (SD-BA), cujo texto, em seu derradeiro substitutivo, “dispõe sobre os contratos de terceirização e as relações de trabalho dele decorrentes”. A respeito dele, têm dito os convertidos e os mais incautos que sua aprovação trará benefícios à população brasileira, garantindo mais empregos, afastando a instabilidade decorrente das imprevisíveis decisões judiciais e assegurando, nas palavras do relator, “avanços importantes para a proteção dos milhões de trabalhadores terceirizados do Brasil, que hoje não dispõem de nenhuma legislação protetora dos seus direitos”. Será?

Saiba o leitor que trabalhadores terceirizados têm, sim, uma estrutura de proteção a seus direitos sociais mínimos, não por lei, mas pela jurisprudência consolidada do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Essa jurisprudência está sintetizada na Súmula nº 331 do TST, pela qual a terceirização é lícita em apenas quatro hipóteses: (a) na contratação de trabalhadores por empresa de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 1974), mesmo em atividades-fim da empresa; (b) na contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983); (c) na contratação de serviços de conservação e limpeza; e (d) na contratação de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador. Se o Parlamento pretendia “positivar” essa proteção, bastaria editar lei que reproduzisse e especificasse esses critérios.

Em todo caso, ressalvar-se-ia o óbvio: se desde Adam Smith a riqueza se produz com força de trabalho, capital e natureza (matéria-prima), salutar que a empresa, nas suas atividades-fim (isto é, naquilo que perfaz a sua atividade econômica principal e a situa no mercado), mantenha força de trabalho própria, sob sua subordinação e responsabilidade. Para as atividades-fim, deve ter empregados próprios. Do contrário, consagraríamos a mercancia de mão de obra: para produzir bens ou serviços, bastaria “comprar” força de trabalho oferecida por interpostas empresas, sob regime de comércio. Empresas que, ao cabo e ao fim, lucram “emprestando” pessoas.

Pois é exatamente o que fará o PL nº 4.330-C. Em seu artigo 3º, ele substitui o critério baseado na distinção entre atividades-fim e atividades-meio, por outro, importado da Europa (e sob severas críticas por lá), que se baseia na ideia de “especialização” da atividade. Noutras palavras, o empresário poderá terceirizar qualquer atividade, inclusive aquelas essenciais ao seu objeto social, desde que o faça por meio de uma “empresa especializada, que presta serviços determinados e específicos, relacionados a parcela de qualquer atividade da contratante”.

Os defensores do projeto dizem que isso calará as Cortes trabalhistas, porque já não haverá a margem de insegurança jurídica ditada pela dicotomia entre atividade-fim e atividade-meio. Falso, pois o litígio apenas migrará. As cortes trabalhistas não discutirão mais se a atividade terceirizada é, para a empresa tomadora de serviços, finalística ou acessória. Discutirão se de fato ela é fornecida por uma empresa “especializada”, que detenha “know-how” diferenciado para aquela atividade, ou se é apenas um simulacro de empresa, sem qualquer especialização técnica, que existe basicamente para fornecer mão de obra comum à(s) tomadora(s). Assim, p. ex., a varrição de dependências configuraria um “serviço técnico especializado”? E o atendimento de balcão? Tudo isto, ademais, com uma agravante: sobre esse novo “paradigma”, o Brasil não tem qualquer jurisprudência acumulada. Tudo poderá vir. A insegurança jurídica triplicará.

Dizem também que haverá avanços na proteção aos trabalhadores. Ledo engano. Esse modelo de terceirização ampla e irrestrita, em qualquer modalidade de atividade, fere de morte garantias constitucionais como a isonomia, porque admite que, em uma mesma linha de produção, haja trabalhadores desempenhando idênticas funções, mas recebendo diferentes salários. Permite burlar a garantia constitucional da irredutibilidade de salários, na medida em que um trabalhador possa ser demitido da empresa tomadora e recontratado, para as mesmas funções, por intermédio da prestadora, mas com salário menor.

E, não bastasse, representa violação direta ou oblíqua a diversas convenções internacionais das quais o Brasil é parte, como a Convenção 111, que repudia o tratamento discriminatório entre trabalhadores, e as Convenções 98 e 151 da OIT, que tratam da proteção contra atos antissindicais e da sindicalização no serviço público. A contratação de empregados e funcionários terceirizados enfraquece os sindicatos, ao retirar dos trabalhadores a sua unidade e capacidade de mobilização, além de sua própria consciência de classe. Afinal, trabalhadores nas metalúrgicas já não serão metalúrgicos, assim como trabalhadores em bancos já não serão bancários; tornar-se-ão, paulatinamente, trabalhadores em empresas de locação de mão de obra?

Por fim, caro leitor, se não se sente pessoalmente atingido por nada do que foi dito aqui, poderia até me indagar: o que me interessa nesta discussão? Sacrificar-se-ão os direitos alheios, não os seus.

Você também estará enganado. A vingar o PL nº 4.330, daqui alguns anos, ao necessitar de serviços de um hospital, você já não saberá se o médico que o atende ou opera foi selecionado e contratado pela instituição nosocomial de sua escolha, ou se é um terceirizado, admitido porque, na terceirização, o “preço” dos serviços cai surpreendentemente. Ao adentrar em um avião, já não terá qualquer garantia de que o piloto ou copiloto foi selecionado, contratado e treinado pela companhia aérea da sua preferência, ou se é alguém fornecido, a baixo custo, por uma empresa prestadora de “serviços técnicos especializados” de pilotagem de aeronaves. Que tal? Pense-se com espírito de solidariedade, pense-se com o próprio umbigo, o modelo proposto pelo PL nº 4.330 é desastroso. Ponto final.

Guilherme Guimarães Feliciano é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP, diretor de prerrogativas e assuntos jurídicos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Artigo publicado no jornal Valor Econômico, edição desta quarta-feira (15).

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